Mundial 2022, o que fazer?
Faltam trinta dias para arrancar o Campeonato do Mundo de Futebol e o debate sobre boicotar o torneio ou não - e se sim, de que forma - faz cada vez mais sentido. O que devemos ou podemos fazer?
O Mundial do Qatar vai romper com o histórico de torneios de verão e arrancar daqui a um mês. Será o primeiro torneio de muitas coisas mas nenhuma delas é a dúbia moralidade sobre a sua organização. E isso diz muito sobre a história negra do futebol - tantas vezes ocultada atrás da sua beleza - e também de como se centralizou o debate nos últimos meses, polarizando o discurso como tem sucedido com todas as discussões relevantes do nosso tempo. O Mundial ser disputado num país sem nenhum tipo de tradição, que conseguiu a organização do modo em que o conseguiu e que construiu, numa área diminuta, uma série de infra-estruturas sobre as costas de mais de 6 mil cadáveres humanos para depois poder limitar os direitos básicos de outros tantos milhares de espectadores, trás motivos mais do que suficientes para a ideia de um boicote generalizado. E no entanto uma coisa é boicotar o que está por detrás de tudo isso e outra, diferente, é boicotar o jogo.
A história dos Campeonatos do Mundo está repleta de “Qatars”.
É triste mas evidente e só quem nega a importância histórica do jogo é que pode negar o impacto que o torneio teve na Itália de 1934, na Argentina de 1978 ou na Rússia de 2018 e na forma como esses países o utilizaram como ferramenta de propaganda para regimes ditatoriais. Até o histórico Espanha 82, vendido como o Mundial da democracia espanhola foi, na realidade, atribuido ao país vizinho durante a ditadura de Francisco Franco e esteve perto de ser mais um nessa lista. Nada diferencia o Qatar de nenhuma dessas edições no sentido de normalizar uma grande competição num estado ditatorial que nega direitos básicos aos seus cidadãos e aos visitantes (um problema que se expande aos Jogos Olímpicos, provas de diferentes modalidades e eventos do futebol europeu transferidos por motivos económicos como a Supertaça italiana ou espanhola) nem faz com que exista um maior motivo hoje, do que nesse momento, para exercer um boicote activo.
Também a forma como o Mundial foi atribuido - atrás de um gigantesco esquema de corrupção e compra de influências e votos a que as principais federações europeias não são sequer alheia - não diferencia o Qatar de outros casos, alguns deles mais conhecidos do que outros, desde o célebre Itália 34 (que Mussolini pagou do seu bolso para persuadir Jules Rimet de um evento à altura das suas expectativas depois dos problemas financeiros da edição inaugural) ao Itália 90, em que a influência da mafia italiana na decisão de atribuir o torneio e na construção de estádios e infra-estruturas faz, ainda hoje, parte da sua lenda negra.
Mais relevante é, sem margem para dúvida, o número de cidadãos de distintos países asiáticos que tem sido vitima de exploração nos últimos anos pelas autoridades qataris - lista onde se incluem os muitos milhares de mortos e feridos nas obras de construção ou indirectamente pelas condições laborais esclavagistas à que estão submetidos - e nesse sentido os números são únicos e devastadores mas não nos podemos esquecer que enquanto a Argentina caminhava para o seu primeiro título mundial, a poucos metros do Monumental a ditadura argentina torturava e executava sumariamente vários opositores ao regime. Durante os dias dos jogos da Argentina muitos corpos foram lançados ao mar aproveitando que todo o país estava paralizado a seguir os jogos da Albiceleste. Também na preparação para os Jogos Olímpicos de Pequim ou na construção das obras para os Jogos de Moscovo registaram-se varias vitimas mortais de forma oficial, suspeitando-se sempre que os números maquilhavam uma realidade bem mais trágica.
Por outro lado está a clássica hipocrisia europeia que está disposta a querer boicotar o torneio que está alimentado pelo sportwashing de um país e no entanto não se preocupa quando esse mesmo estado financia um clube que participa na maior prova de clubes a nível mundial, não se falando, nesse contexto, a um boicote aos jogos do PSG - e, se queremos expandir o problema, a jogos do grupo City do Dubai, do Newcastle recém-adquirido pela ditadura saudita, ou por outras entidades cujos donos são países ou entidades com as mãos manchadas de sangue.
Porque é válido boicotar as marcas que apoiam a organização do Campeonato do Mundo - a maior parte delas com contratos de larga duração com a própria FIFA - durante o torneio mas que são ávidos consumidores antes e voltarão a ser depois?
E claro, no meio de tudo isto, parece que para muitos boicotar um Mundial da FIFA no Qatar é uma opção que faz todo o sentido mas então não seria necessário ser frontal e boicotar de forma definitiva a própria FIFA, que potenciou, no primeiro lugar, a existência do torneio e é a origem de todo o problema?
A tudo isto há um elemento importante que convém não ignorar.
O Futebol é meu. É vosso. É de todos.
É um jogo para os adeptos por muito que a sua visão de modelo de negócio comercial paute o caminho a seguir na esmagadora maioria das ocasiões. Os noventa minutos, no entanto, continuam, ainda, a ser de todos. Dos jogadores. Dos técnicos. Dos analistas. Dos jornalistas. Dos adeptos. Sobretudo, dos adeptos. Aceitar boicotar um torneio que tem todos os motivos para ser boicotado com base em valores morais, é aceitar também boicotar algo que não pertence àqueles que o sequestraram - como têm feito há décadas, de uma forma ou outra - e sim a todos nós.
Um adepto consciencializado pela triste situação vivida por aqueles cujos direitos básicos são violados constantemente pelas autoridades qataris pode optar por negar-se a participar na dinâmica comercial que alimenta os Campeonatos do Mundo, seja comprando cromos, merchandising oficial, aliar-se em promoções das marcas que se querem colar ao torneio, seja através da FIFA ou das próprias seleções nacionais. Pode decidir não ser consumidor económico do mundial de forma frontal mas isso não deveria significar virar as costas ao jogo.
O génio de Lionel Messi e o seu último The Last Dance. A hipótese do último hurrah de Cristiano Ronaldo, a viver o pior momento da sua carreira nestes meses prévios. A coroação de Neymar e uma excelente geração brasileira. O descaro da Espanha montada por Luis Enrique, a ascensão da excitante Dinamarca, o impacto de Flick na Mannschafft, a confirmação do crescimento da Inglaterra ou o coroar de uma geração de ouro na Bélgica. O êxito de seleções africanas, americanas ou asiáticas mais além do binómio Europa-América do Sul. Todas estas possíveis histórias e gestas merecem ser vistas da mesma forma que Kempes foi herói aos olhos de quem teve a oportunidade de o ver em 1978, em Meazza coroou-se como um dos melhores futebolistas de sempre em 1934 para os mais veteranos e Mbappé conquistou o mundo na Rússia como uma das mais excitantes promessas adolescentes da história para a geração actual.
No fundo o Mundial em campo continuará a ser digno de ser visto, vivido e, sobretudo, sentido. O Mundial fora dele, merecerá a constante denúncia por parte de todos aqueles que sentem que a violação de direitos humanos e das leis mais básicas da Humanidade estão a ser enterradas em nome de uma cultura de sportswashing que hoje permite esses comportamentos ao Qatar como, num passado recente, permitiu a uma Rússia que agora é vista do prisma oposto de forma global.
Tudo é mutável numa sociedade que vive em permanente espirito de conflicto. As memórias do futebol sobrevivem a essa bipolaridade social. Ninguém com valores humanos é capaz de evitar criticar a ditadura argentina mas isso não a impedirá nunca de admirar os livres com o exterior do pé de Teofilo Cubillas ou os remates do meio da rua de Arie Haan ou Nelinho. Os adeptos croatas jamais esquecerão o vivido há quatro anos na Rússia por muito que hoje todos sejam conscientes que o país já, nesse momento, financiava movimentos secessionistas na Ucrânia e nas repúblicas caucasianas enquanto perseguia activamente membros da comunidade LGTB+ e rivais políticos dentro do país.
Retirar da nossa vida todas as memórias futuras é virar as costas ao futebol. Quando é precisamente o jogo que merece ser resgatado do lodo onde continuam empenhados em afogá-lo. O único boicote possível parte dos próprios protagonistas. Se os jogadores decidem não ir a jogo a vitória de todos os que acreditamos num torneio manchado de sangue será completa. Mas essa é uma batalha que não cabe, realmente, aos adeptos, combater.
Em teoria, devíamos todos boicotar o mundial do qatar. Mas em teoria também deveríamos ter boicotado muitos outros mundiais, europeus e jogos olímpicos organizados em regimes ditatoriais e sobre o sangue de muitas vítimas. Mas em teoria também não deveríamos vestir 90% da roupa que vestimos nem calçar 90% das sapatilhas que calçamos, porque se materializam à custa de trabalho precário ou até mesmo escravo e/ou infantil. A lista poderia prosseguir. O ser humano é imperfeito e conseguimo-nos abstrair dos horrores associados às nossas rotinas e gostos. Também sou culpado. Somos todos. Voltando à bola, sempre gostei da magia dos europeus e mundiais. Que associo a dias de Verão. À expectativa de um jogo como poucas vezes tive numa partida do campeonato nacional, mesmo daquelas que garantem títulos às minhas cores. Mas por que será que me invade então este desânimo e quase desinteresse pelo mundial do qatar? É mesmo a desfaçatez do vale tudo. De ver que já nem é preciso disfarçar para vender um mundial a um país sem a mínima tradição futebolística, com regras sociais abjetas e num calendário tão contra natura. Verei jogos? Claro. Vou festejar se houver motivo? Claro. Sou humano... Mas, no fim das contas, vai ficar sempre aquela sensação de que não, não é este o mundial que eu gosto. Não é este o futebol que eu gosto. E queria voltar a ser criança para conseguir ver só a bola a rolar. Sem mais. Quem disse que é bom ser adulto?