URSS 90, o Mundial que podia ter adiado o fim da Guerra Fria
Teria a Guerra Fria terminado de outra forma se o Itália 90 se tivesse convertido em União Soviética 90? Numa jogada política onde a Máfia jogou um papel importante a história do futebol mudou.
A princípio dos anos oitenta o império soviético, em decadência, agarrou-se à ideia de unidade ideológica e nacional à volta dos grandes eventos desportivos. Depois de Moscovo organizar os Jogos Olímpicos - no meio de um caos diplomático que culminou com um boicote colectivo dos países da esfera NATO - o Kremlin tentou tudo para conseguir a organização de um Mundial de Futebol. As manobras políticas na sombra neutralizaram o sonho soviético e aceleraram a desintegração do Bloco de Leste.
O que pode relacionar a queda do Muro de Berlim e o desmembramento do Bloco de Leste com um Mundial de futebol? Tudo e nada.
Em Outubro de 1989 o império soviético começou a tremer desde os alicerces. Em questão de meses o castelo de cartas ruiu e com ele o sonho de uma Europa sob os designios comunistas dirigidos desde Moscovo. Dois anos depois da mítica noite que finalmente uniu Berlim depois de quase três décadas de afastamentos forçados, a própria União Soviética desapareceu do mapa, estilhaçando-se entre vários países-nação diferentes. O mapa político e social europeu nunca mais seria o mesmo. E no entanto essa decadência – evidente ao longo de toda a década de oitenta, desde a derrota na invasão do Afeganistão às sucessivas alterações na cúpula do poder devido à gentrificação da elite do PCUS – podia ter sido adiada graças ao futebol. Adiada, sim, porque o seu final transformou-se, cada vez mais aos nossos olhos, numa inevitabilidade histórica. Mas teria sucedido daquele modo caso o velho sonho soviético de organizar um Mundial tivesse sido cumprido?
Sim, a União Soviética tentou fazer com o futebol o que tinha logrado com o movimento olímpico. Mas foi precisamente a amarga experiência olímpica que acabou por destroçar o projecto de receber o Mundial de 1990. O torneio que a Rússia – o estado-nação herdeiro por excelência da herança soviética – finalmente albergou em 2018 podia ter tido lugar no país quase duas décadas antes. Uma possibilidade tão assustadoramente real que a Guerra Fria tomou assento, por uma vez, nas decisões desportivas da FIFA para impedir que o caos tomasse conta do mundo do futebol.
Em 1980 a União Soviética organizou os Jogos Olímpicos, os primeiros na história a serem disputados no lado este da cortina de ferro. A competição foi uma farsa desportiva. Ao boicote generalizado dos países ocidentais, liderados pelos Estados Unidos, sucedeu-se também a inevitável suspeita de doping da esmagadora maioria dos países presentes em prova, quase todos do bloco soviético. Foi o culminar desportivo da Guerra Fria mas também o pontapé de saída na luta pelo poder ideológico no corredor do poder futebolístico. Nesse mesmo ano começou a desenhar-se no Politburo moscovita as bases de uma candidatura histórica. A super-potência queria organizar o Mundial de futebol. A decisão não era inocente.
O futebol era de longe o desporto mais popular do país e a realização de um evento desportivo desta magnitude era não só uma manobra propagandista única como iria permitir ao país renovar muitas das estruturas decadentes – e não só as desportivas – para apresentar ao resto do Mundo uma imagem revigorada de um país que se dizia, já por então, que estava exausto do esforço militarista da Guerra Fria.
O anunciado abandono da Colômbia e o anuncio dos Estados Unidos como potencial organizador do Mundial de 1986, apenas acelerou a intenção dos soviéticos que não queriam ser ultrapassados pelo seu rival, um país que, para mais, nem sequer tinha o futebol entre os seus grandes desportos de massas. No final os americanos foram ludibriados pela associação entre o brasileiro João Havelange e a mexicana Televisiva mas garantiram a preferência a receber o torneio em 1994. Para a URSS estava claro que ganhar a organização de 1990 era uma questão de política internacional mais do que ambição desportiva.
A candidatura foi desenhada dentro dos gabinetes de topo do aparelho do Partido Comunista e era bastante ambiciosa. Os países qualificados iriam mover-se por um imenso território que incluía jogos em Moscovo (final e uma meia-final), Kiev (jogo de abertura), Minsk, São Petersburgo (meia-final), Odessa, Baku, Tiblissi e Estalingrado. A mensagem do torneio era política tanto para fora – uma demonstração de força – como para dentro.
A principio dos anos oitenta as sucessivas nações que compunham o estádio soviético começavam a fazer-se ouvir dando a ideia de que o edifício se começava a desmoronar. Organizar um torneio como um Mundial, com jogos espalhados pelas repúblicas soviéticas, era também uma forma de acalmar dissidências e reforçar a união do império. Para os vizinhos do Pacto de Varsóvia também servia como mensagem política de grande importância. Afinal, organizar um Mundial era a melhor prova da aceitação e do poder global de um país pária ainda aos olhos de meio mundo.
A candidatura soviética foi oficialmente apresentada a finais de 1982. Não competia naturalmente só. Em 1990 a vaga pertencia, por direito, a um país europeu e foram seis os países que apresentaram as suas candidaturas. Áustria e Grécia eram os mais humildes dos candidatos e rapidamente foram descartados de qualquer equação. A Jugoslávia, organizadora do Euro 76, tinha a seu favor o seu estatuto de dissidente com o restante Bloco de Leste mas havia dúvidas sobre a idoneidade das infra-estruturas necessárias. Tal como os soviéticos, também em Belgrado se pensava que organizar um grande torneio futebolístico era a melhor forma de pacificar as repúblicas internas. Também aí já se antecipava o caos.
A luta parecia, no fim de contas, resumida a três candidatos. Para além dos próprios soviéticos tanto a Inglaterra como a Itália tinham avançado com a sua proposta. Para os ingleses era uma forma de confirmar a sua recente hegemonia no futebol europeu. Estávamos já a entrar em 1983. O hooliganismo era uma realidade mas ainda não tinha acontecido o desastre de Heysel e os clubes britânicos reinavam na Europa. Era uma candidatura forte apesar de terem a recente organização do torneio em 1966 em contra.
Os italianos, por outro lado, reclamavam que o seu único Mundial organizado remontava já a 1934 e que havia não só infra-estruturas como a organização podia ajudar a uma necessária e profunda regeneração do jogo no país. Eram também os campeões em título. Os mais críticos apontavam o facto do anterior Europeu, em 1980, se ter realizado precisamente em terras transalpinas e ter sido um desastre, com a maior parte das bancadas vazias e estádios em péssimas condições.
A caminho da decisiva votação a questão política entrou em jogo. Instigados pelos americanos – que garantiam os votos da região da CONCACAF – os ingleses desistiram a favor dos italianos, reforçando assim o seu bloco de influência. Tudo se ia decidir por detalhes. Os soviéticos continuavam a parecer os favoritos - até porque a influência soviéticas nas federações africanas e asiáticas eram importante - mas então chegou o inoportuno anuncio do boicote soviético aos Jogos Olímpicos de Los Angeles como retaliação ao protesto ocidental quatro anos antes.
Foi uma jogada que custou caro. O escalar de acusações entre um e outro bando rival começaram a preocupar profundamente a FIFA que temia agora ter em mãos um torneio manipulado por questões políticas. Não podiam permitir-se organizar uma prova onde eventualmente países como Itália, Alemanha Ocidental, França, Espanha, Inglaterra ou nações associadas aos Estados Unidos politicamente como o Brasil, Argentina ou Chile boicotassem a prova. João Havelange tomou cartas no assunto e foi utilizando a sua influência para congregar votos a favor da candidatura italiana. Ao mesmo tempo em cena entrou também o crime organizado italiano, atrás do fantasma da Máfia. A construção de novos estádios, acessos e infra-estruturas estavam intimamente ligados a áreas onde a Mafia siciliana, a Camorra napolitana ou a Ndraghanta sarda começava a investir grande parte do lucro do crescente tráfico de drogas no mercado europeu. Por detrás de muitos dos contratos para erguer estádios e estradas estavam empresas associadas a essas organizações e estes eram os primeiros interessados que o torneio tivesse lugar no país, facilitando assim fundos para os necessários sobornos com algumas federações como anos mais tarde o caso Tangentopoli acabou por revelar.
Os soviéticos sabiam que contavam com o apoio africano e asiático, sim, mas face à união entre a UEFA e a CONEMBOL, uma união política sobretudo, estavam agora em minoria. O dia da votação, 19 de Maio de 1984, confirmou a mudança de sentido de voto de muitos dos presentes. A URSS, que chegou a contar, segundo as suas próprias estimativas, com um clara vitória na primeira ronda, teve apenas cinco dos dezassete votos. Onze foram para os italianos, uma maioria absoluta que permitiu ao país celebrar a organização do torneio. E paralelamente, de acelerar a desintegração do império soviético. Poucos meses depois Mikhail Gorbachov foi eleito secretario geral do Partido Comunista soviético abrindo caminho à Perestroika que culminaria como a desintegração do império.
A derrota da URSS foi um sério golpe diplomático.
O país tinha colocado grandes expectativas em receber a mais celebrada competição do planeta e a clara derrota contra os italianos deixava claro que a sua influência política já não era a de outros tempos. O efeito de congregação que os soviéticos esperavam conseguir funcionou no sentido inverso com a noticia da derrota da candidatura e alimentou ainda mais a dissidência interna das suas próprias repúblicas mas também o progressivo afastamento dos seus estados-satélites. A nível internacional foi outro golpe público sério depois da polémica à volta dos Jogos Olímpicos de Moscovo.
Ironicamente, se o torneio se tivesse realizado na URSS, o país teria contado com uma geração única, legítimos candidatos a ganhar o troféu. A equipa nacional soviética foi uma das melhores no México 86 a pesar da inesperada e precoce eliminação frente aos belgas e acabou vice-campeã do Europeu realizado dois anos depois. Em Itália a URSS não passou da primeira ronda terminando em último lugar num grupo com argentinos, romenos e camaroneses.
Por essa altura já o império se estava a desfazer o que afectou profundamente a mente de vários jogadores, alguns dos quais já tinham tido experiências para esquecer longe dos embriões fechados onde tinham brilhado, em Kiev, Moscovo ou Tiblissi. Seria a sua última aparição num torneio internacional. Organizar o Mundial de 1990 teria significado um sopro de ar fresco no decadente Bloco de Leste?
É extremamente provável que um evento dessas proporções tivesse dinamizado os dirigentes e os cidadãos e criado uma sensação de unidade, ainda que ténue, que podia ter sustentado o temporal de 1989 de outra forma. Ironicamente, foi precisamente essa derrota nas urnas da FIFA que abriu caminho a que o vento de mudança que arrasou a Europa a final da década encontrasse uma União Soviética já em estado terminal, sem aspirações nem ambições a um mundo diferente. E para aqueles estados satélites, asfixiados pelo dominio de Moscovo, marcou também uma nova era, coroada pela ascensão futebolistica nos anos noventa das gerações de ouro do futebol romeno e búlgaro.
A jogada política das grandes potências do bloco ocidental, alimentadas pela visão da FIFA, dirigida por João Havelange, impediram o velho sonho soviético de receber um Mundial. Vinte e oito anos depois a Rússia acertou contas com a sua própria história mas o que podia ter passado nesse Junho de 1990 ficará para sempre para a história como um dos grandes enigmas sem resposta.