Torcida, a primeira claque da história
O futebol sem claques parece algo impossível hoje em dia mas a primeira vez que um grupo de adeptos se organizaram para apoiar a sua equipa o mundo ainda se pintava a preto e branco.
9Enquanto as autoridades debatem o papel dos adeptos nos estádios e promovem a criação de mecanismos de controlo, é importante relembrar que o apoio organizado aos clubes tem uma larga e saudável história que dista muito da associação de violência,crime e insegurança que, desde há uns largos anos, muitos tentam generalizar. Com nome brasileiro e sotaque eslavo, a Torcida foi a primeira claque organizada reconhecida e abriu um precedente que mudou para sempre o aspecto dos estádios de futebol de todo o Mundo.
Nas bancadas do estádio Maracanã, um grupo de jovens croatas vivia extasiado o momento mais triste da história do futebol brasileiro. O golo de Alcides Ghighia, a pouco mais de dez minutos para o final do jogo, emudeceu o santuário de pedra sob o qual o Brasil queria construir o seu império. Foi o dia em que Barbosa fez chorar um país mas também o dia onde o imponente estádio abandonou os seus jogadores entregando-os ao mais aterrador dos silêncios. Mas isso aconteceu no fim, nos momentos que desenharam o Hiroshima brasileiro, como descreveria depois Nélson Rodrigues. Antes, durante grande parte do encontro, o estádio foi um sambódromo, uma plateia de dança, baile e paixão. E de apoio, sobretudo de um apoio inquestionável à seleção que todos imaginavam campeã mundial. Esse grupo de jovens croatas, da ilha de Korcula, estavam no Brasil de férias e tinham aproveitado a ocasião para seguir o Mundial.
Tinham ficado seduzido pela forma espontânea e livre como os adeptos brasileiros animavam a sua seleção e imaginaram como seria se na sua terra natal os adeptos do seu clube, o Hadjuk Split, fizessem o mesmo.
Quatro meses depois, o mesmo grupo, liderado por Bernard Vukas, já reunido em casa, encontrou-se formalmente para criar a primeira associação de apoio organizada, o que mais tarde seria, no vocabulário futebolístico a primeira claque. Lembrando-se seguramente da sua experiência brasileira, não encontraram melhor nome para o grupo do que Torcida, a expressão brasileira para os adeptos nas bancadas. Era o 28 de Outubro de 1950 e estava criado o mais importante precedente na história das organizações de adeptos de futebol.
O grupo Torcida começou activamente a apoiar o Hadjuk tanto nos jogos em casa como nas viagens que o clube realizava pela Jugoslávia, onde disputava a liga nacional contra outras equipas croatas, sérvias, bósnias, macedónias, kosovares e eslovenas. A adesão ao projecto foi tremenda. No primeiro jogo em que o grupo apareceu de forma organizada no estádio onde o Hadjuk ia disputar o título nacional, reuniram-se mais de 20 mil pessoas que transformaram por completo o ambiente do jogo com cânticos, bandeiras e coreografias organizadas previamente.
O Hadjuk bateu um dos seus históricos rivais, o Estrela Vermelha, e sagrou-se campeão invicto, um recorde histórico para o futebol jugoslava. A fama da Torcida rapidamente alcançou todos os países do Bloco de Leste.
O grupo de adeptos seguiu o Hadjuk pelo país na temporada seguinte mas a sua popularidade era mal vista pelos dirigentes do partido comunista jugoslavo, incapazes de a controlar desde dentro, apesar de terem logrado infiltrar vários dos seus agentes nos quadros da claque. Quando a Torcida se revelou demasiado rebelde e grande para dominar, as autoridades políticas passaram a adoptar medidas repressivas. Primeiro proibiram o nome, denunciando-o como uma concessão ao ocidentalismo. Vários dos seus fundadores acabaram presos e um deles, Venceslau Zuvela, foi mesmo condenado a servir vários anos de cadeia, sob a acusação de utilizar o movimento como oposição ao regime do marechal Tito.
As restrições obrigaram a claque a mudar a sua postura oficial. Continuavam a reunir-se regularmente no estádio do Hadjuk, mas sem utilizar símbolos que os identificassem abertamente. O ambiente no estádio do clube permaneceu um dos mais quentes de toda a Jugoslávia e inspirou vários movimentos, sobretudo nos clubes de Belgrado. De tal forma que, quando a legislação contra as claques foi alterada, em pleno movimento de expansão internacional dos adeptos organizados, a Torcida voltou à ribalta. Mas agora não estava só.
Outros movimentos, inspirados directamente no hooliganismo britânico, como os Bad Blue Boyes dos rivais croatas do Dinamo Zagreb ou os Tigres de Arkan, do Estrela Vermelha, tinham tomado a dianteira e transformado para sempre o rosto das claques da Europa de Leste, radicalizando os adeptos atrás de ideais e interesses políticos. Ao contrário dos seus sucessores, o modelo original da Torcida distanciava-se profundamente da imagem que mais tarde a claque conquistou, quando decidiu entrar em competição directa com os seus rivais, utilizando as mesmas armas e referências ideológicas, especialmente no duro período da guerra dos Balcãs. Da mesma forma que o movimento se expandiu por toda a Europa de Leste, foram os exemplos mais agressivos da BBB ou dos Tigres que fez escola.
O regime comunista, ao procurar criminalizar o espirito positivo da Torcida, acabou por abrir caminho a uma nova via onde a violência tinha realmente lugar. Nos anos noventa a claque do Hadjuk teceu inclusive uma relação de amizade com a claque encarnada dos No Name Boys, quando estes exibiram durante a guerra dos Balcãs uma mensagem de apoio à causa croata. O falecimento de três adeptos do Benfica, num acidente de viação, quando ambas equipas se cruzaram na Champions League de 1995, reforçou ainda mais os laços e hoje a claque tem várias ligações por todo o continente europeu. Pouco a pouco o espírito original foi-se perdendo e a Torcida enveredou pelo caminho da violência gratuita. Os desacatos provocados em várias cidades mancharam a origem pacífica do grupo original.
A partir de finais dos anos sessenta o movimento ultra foi ganhando adeptos na Europa Ocidental. Começaram a surgir os primeiros grupos organizados em Italia, Espanha, França, Alemanha e, já nos anos oitenta, o fenómeno chegou ao futebol português. Com o movimento ultra chegou também uma nova forma organizada de violência dentro e fora dos estádios que manchou para sempre o papel positivo de apoio das claques às suas equipas através de tifos, pirotecnia, coreógrafias e cânticos. Perdida no tempo ficou a imagem de um grupo de adeptos croatas, apaixonados pelo espírito despreocupado do adepto brasileiro, que tentaram reproduzir, no Brasil da Europa, como a Jugoslávia era conhecida futebolisticamente, essa paixão fervorosa da torcida.