Quem foi Pichichi?
Todos os anos o melhor marcador do futebol espanhol recebe o prémio Pichichi. Mas porquê essa designação e quem é o homem detrás da lenda?
Rafael Moreno Aranzadi é um nome desconhecido no meio futebolistico. Pichichi é uma lenda.
São a mesma pessoa, carne e osso, e porque não, alma e espirito. Nome e apelido do maior goleador espanhol da primeira metade do século XX, o homem que quebrou barreiras e instituiu recordes, alguns ainda hoje por bater. O facto de ter jogado nas primeiras épocas da história do futebol do país vizinho retira-lhe o protagonismo que teria, anos depois, Zarra. Goleador esse, igualmente mítico, e que também dá nome a outro prémio particular, o de melhor goleador do campeonato espanhol que é…espanhol.
Muitos dos números que rodeiam a carreira de Aranzadi estão envoltos numa aura de incerteza. Mas o seu talento, registado para a posteridade, foi inegável.
O dianteiro vasco nasceu em 1892 em Bilbao, uma era onde o futebol ainda estava a dar os primeiros passos no continente. Bilbao foi uma das principais portas de entrada em Espanha - juntamente com Huelva e Barcelona - e por isso é acertado dizer que Aranzadi nasceu no sitio certo à hora certa. Enquanto o seu pai era o presidente da câmara de Bilbao, o seu tio, e mentor, foi o célebre escritor Miguel de Unamuno, um dos maiores génios intelectuais da transição de século e figura impar na cultura europeia. Foi o tio que, ao vê-lo jogar sempre contra rapazes mais velhos, nas ruas do porto de Bilbao, o baptizou como o “Pichichi”, o pequenino. O nome ficou para a posteridade com a mesma certeza da prosa do autor de Niebla.
O último avançado a ostentar o titulo de Pichichi foi o polaco Robert Lewandwoski. O prémio com esse nome foi lançado pelo jornal Marca com a benção do ministro dos desportos de Franco, o general Móscardo, a partir de 1953. Ao longo da história houve jogadores que marcaram uma era e venceram o prémio bem mais do que uma só vez. Os golos de Zarra, Di Stefano, Hugo Sanchez, Quini ou Puskas ficaram para a posteridade, bem como as conquistas posteriores de Lionel Messi e Cristiano Ronaldo. Mas a história reteve sempre o nome de Pichichi, o avançado que faz ecoar do passado a precisão do seu disparo. O debate semanal sobre quem vai ser o novo Pichichi faz parte da essência cultural do futebol espanhol. Até nos torneios de rua, nas ligas amadoras ou nas competições entre amigos fala-se tanto da equipa vencedora como da individualidade que conquista o “Pichichi” de cada torneio disputado. Mas porquê Pichichi? Viajamos atrás no tempo para recuperar a carreira do mais prolifero avançado da história do futebol espanhol.
Em 1911, com 19 anos, o dianteiro estreou-se com a camisola da equipa principal do Athletic Bilbao. Depois de anos a jogar pelas equipas de reservas, foi-lhe finalmente dada a oportunidade de brilhar. Nesse dia começou uma longa carreira de sucesso que só terminaria 10 anos depois. O clube vasco venceu o jogo por 3-0 mas Pichichi não marcou. Algo que sucederia muito poucas vezes em toda a sua carreira.
Era habitual vê-lo jogar com um lenço branco, atado à cabeça, que o distinguia imediatamente dos demais. Dois anos depois de estrear-se, quando já se tinha celebrizado como goleador (chegou a marcar 10 golos por jogo em quatro encontros consecutivos), tornou-se também no primeiro futebolista a marcar no mítico estádio de San Mamés, aquando da sua inauguração.
Durante essa década o dianteiro apontou cerca de – e aqui entram as dúvidas estatísticas – 100 golos. Não existia então um campeonato nacional, só a Copa del Rey e um torneio regional em Vizcaia, pelo que muitos imaginam que a existência de um torneio regular com quarenta jogos ao ano e essa cifra poderia ter sido muito maior. Por cinco ocasiões Pichichi ganhou o campeonato regional do Norte, disputado por equipas da zona do Pais Vasco, Navarra, Asturias e Cantábria e ao serviço do Athletic venceu ainda quatro Copas del Rey. Em 1920, fez parta da expedição da selecção espanhola, então na sua primeira aventura olímpica, aos Jogos de Antuérpia. Marcou o seu único golo internacional, contra a Holanda, e conquistou a medalha de Prata.
No ano seguinte, Rafael decidiu colocar um ponto final à sua carreira. Tinha 29 anos mas já começava a ser criticado pela afficion basca e decidiu dar inicio a uma carreira como árbitro. Não foi possível. Meses depois faleceu, surpreendentemente, vitima de tifo, deixando órfão o ataque da equipa basca mais de quinze largos anos, até ao aparecimento de Zarra, duas décadas depois. O clube finalmente inaugurou anos depois um busto que os clubes visitantes homenageavam, deitando um ramo de flores aos pés a cada uma das suas visitas, um gesto que entrou no folclore do futebol da época e foi imitado por outros clubes que sofreras perdas inesperadas de alguns dos seus maiores idolos como o caso de Pepe do Belenenses, ainda hoje alvo de homenagem no estádio do Restelo e que também morreu em condições trágicas poucos anos depois do desaparecimento de Moreno Aranzadi.
Em 1953 o jornal Marca, fundado por um grupo de falangistas apoiantes do regime franquista e com a sua primeira sede na vizinha cidade de San Sebastian, tomou a decisão de instituir um prémio para celebrar o melhor marcador da liga, um torneio que acabava de celebrar as suas duas primeiras décadas de vida. Para dar nome ao galardão ilustre, o director do jornal elegeu o nome do mais prolifero goleador do futebol espanhol até à data: Pichichi.
Ajudava na escolha que Arazandi já não tivesse entre os vivos, pelo que a sua escolha acabava por parecer consensual a todos, fossem adeptos fervorosos do Athletic Bilbao ou simplesmente aficionados desse futebol de rádio e estádios pequenos em dimensão e gigantes em alma. Ironicamente o primeiro avançado a levantar o troféu foi Telmo Zarra, precisamente o sucessor espiritual do goleador. Anos mais tarde o jornal Marca decidiu premiar os goleadores anteriores à sua fundação que receberam uma réplica do galardão, desde a edição inaugural da liga em 1932/33. Isso fazia de Zarra, o primeiro vencedor do troféu, a conquistar nesse ano de 1953 o seu sexto, um recorde que permaneceu até que Lionel Messi o superou em 2018/19. Dois anos depois o génio argentino estabeleceu um novo recorde, com o seu oitavo triunfo, liderando hoje a lista histórica que inclui ainda Alfredo di Stefano, Hugo Sanchez e Quini (com cinco vitórias), Ferenc Puskas (com quatro triunfos) e Isidro Langara, José Garate e Cristiano Ronaldo (três vezes galardoado).
Todos eles fazem parte da história goleadora do futebol espanhol mas por muito grandes que tenham sido as suas inesquecíveis gestas no final do dia o seu nome é apenas uma adição temporal. O de Pichichi é eterno.