O mundo é daqueles que acreditam
"Audácia, audácia, sempre audácia". A mítica frase do imperador Frederico da Prússia podia perfeitamente resumir a passagem de Roger Schmidt pelo Benfica e a transformação sofrida pelo clube da Luz.
A sorte favorece os audazes.
Um chavão repetido mil vezes que encaixa como uma luva na temporada de 2022/23 do SL Benfica. Um clube que, desde a chegada de Roger Schmidt - e a mudança de alguns paradigmas presidenciais com Rui Costa - parece ter deixado para trás um victimismo crónico instalado, uma especie de zona de conforto desagradável, para voltar a acreditar que a sua sombra era mais pequena que a sua ambição. E essa permanente audácia, esse acreditar em que não há limites, tem sido precisamente o modelo a seguir ao ponto que, contra todo prognóstico, os fados decidiram recompensar o clube com um cenário hipotético histórico. Hoje o SL Benfica está a quatro jogos de regressar a uma final da Champions League. Um cenário impossível, como se disse tantas vezes dentro do próprio clube, que resulta que só necessitava de um abanão para estar na eventualidade de se concretizar. E uma lição ao vitimismo crónico do nosso futebol, que há muito tempo que aceitou que a audácia não funciona quando foi graças a ela, sempre, que o futebol português logrou os seus maiores triunfos nas noites europeias.
Em 1960, quando assinou pelo SL Benfica, o húngaro Bela Guttman, oficialmente cansado do clima húmido do Porto e bastante mais interessado na oferta económica que lhe chegava da capital, pediu um bónus no caso de levar o Benfica a vencer a Taça dos Campeões Europeus. A competição tinha quatro anos de vida. Todas as suas edições tinham sido ganhas pelo Real Madrid em finais contra equipas latinas (Stade Reims, por duas vezes, Fiorentina e AC Milan). O Benfica, uma década antes, tinha precisamente vencido a segunda edição da Taça Latina, prova cujas figuras hegemónicas e transferiram para o torneio criado pelas mentes detrás do L´Equipe. Os dirigentes do Benfica riram-se. Como qualquer dirigente português faria. Num país onde pensar pequeno era politica de estado, a ambição era algo dificil de entender. Mas Guttman, sábio como poucos, sabia que a natureza do torneio - especialmente com o fim do critério regional no sorteio - e o dominio do futebol latino faziam de um clube português, tarde ou cedo, potencial finalista. E quem diz finalista, diz vencedor. Dois anos depois o Benfica mais ofensivo e audaz da sua história vencia o Barcelona na final. Com muita sorte. Sorte conquistada, diriam alguns, por essa coragem inaudita. Um ano depois, para que não restassem duvidas, outro triunfo, contra um rival ainda mais imponente. Seguiram-se três finais mais em cinco anos. E depois um progressivo estacamento emocional que empequeneceu o clube na Europa enquanto seguia grande em casa.
Foi necessário outro abanão de fora, desta vez da mais longiqua ainda Suécia, para o Benfica voltar a acreditar em si mesmo. Com Erikson o Benfica voltou a ser audaz, voltou a encarnar na sua versão mais ofensiva e com ela regressaram as finais, primeiro a da UEFA de 1983 e mais tarde duas da Taça dos Campeões Europeus, uma com o sueco e outra com um dos seus discipulos, o genial e sempre esquecido Toni. Depois veio o “Vietname” e a progressiva perda de identidade de um dos clubes mais importantes da história das noites europeias. Uma depressão que durou décadas porque, mesmo quando a equipa voltou a vencer em casa, encontrou sempre problemas em competir na Europa. As duas finais da Europa League foram um oásis mas também um recordatório que ali era o habit natural da segunda divisão europeia. E parecia que o Benfica, e o futebol português, não podiam ambicionar a mais. Inevitavelmente o clube necessitava de outro abanão para acreditar em si mesmo e esse abanão teria de vir de fora. E veio mesmo.
Schmidt chegou a Portugal sem se preocupar com o emails, Polvos, perseguições e victimismos. Não quis organizar jantares com jornalistas amigos para cuidar a sua imagem nem tentou ser o rostro que ia “salvar o futebol português” desde um low profile humano como tentaram os seus antecessores. Chegou apenas e só com a sua metedologia de trabalho, uma crença infalível numa ideia de jogo e a consciência de que as limitações estão onde as queremos colocar. Beneficiou, isso sim, de uma direção que mudou o paradigma no que ao investimento diz respeito.
Se os últimos dez anos de Vieira ficaram marcados por uma contenção de custos e uma aposta na valorização dos activos da formação, Schmidt herdou um plantel melhorado no ano e meio anterior e com plafond suficiente para investir. Fê-lo de forma cirúrgica e assertiva, com a chegada de jogadores que conhecia bem, como Aurnes ou Bah, e sobretudo na aposta do clube numa promessa do futebol sul-americano como Enzo Fernandez. Nem tudo foi perfeito. Ricardo Horta foi assediado mas não conseguiu transpor as teias do curioso negócio entre o Braga e o Málaga, o que permitiu no fim de contas ao técnico encaixar duas peças chave no seu puzzle, João Mário no apoio ao ataque e Florentino Luis, recuperado para a causa, no apoio na medular. Aproveitando o melhor que o Seixal tinha para oferecer nas figuras de Gonçalo Ramos e do surpreendente António Silva, e na qualidade já existente no plantel com Alejandro Grimaldo ou Rafa Silva, o técnico alemão encontrou as peças necessárias para fazer funcionar o seu puzzle. Não inventou nada, não revolucionou o futebol português e nem sequer trouxe mudanças drásticas como outros técnicos estrangeiros fizeram no passado. Foi, simplesmente, o arauto de um conceito simples. Jogam os melhores, num esquema que os potenciam, e jogam sem medo de ir para a frente marcar mais golos dos que os que sofrem. E essa audácia funcionou desde o primeiro momento.
A temporada do Benfica não foi fácil, serpenteando a herança que os atirou para as pré-eliminatórias europeias, mas essa dose de confiança foi-se reforçando à medida que se ultrapassavam obstáculos. A dinâmica de vitórias apenas serviu para afastar fantasmas e reencontrar os jogadores com os adeptos. A confluência dos benfiquistas à Luz entronisava neste novo espirito colectivo, com a recuperação da vénia aos adeptos e o devolver do grito do terceiro anel ao relvado. Talvez por isso PSG e Juventus pareceram, em 2022, menos tubarões do que teriam sido dois anos antes. E também por isso foram-se ultrapassando os obstáculos europeus que, teoricamente, pareciam infranqueáveis. Se no campeonato tudo funcionou sempre bem, foi na Europa que a filosofia de Schmidt fez mais sentido.
Cada vez a natureza das noites europeias tem recuperado o espirito audaz e ofensivo do jogo. Os jogos a eliminar têm cada vez mais reviravoltas, mais golos, e isso advém da crença em que se pode superar qualquer adversidade. Se houve uma altura para a contenção e para o medo, não é esta. O Benfica de Schmid tem sabido interpretar essa onda da mesma forma que em Itália o Napoli despojou-se de traumas antigos - mesmo perdendo sucessivamente jogadores chave - e projectos que viviam da especulação permanente como o Atlético de Madrid de Simeone ou a sempiterna Juventus, estão condenados a cair numa segunda divisão europeia se não arrepiarem caminho. De certa maneira os que souberam construir a sua própria sorte estão agora a beneficiar-se dela. Encarnados e napolitanos defrontaram os rivais mais acessiveis dos oitavos de final no sorteio e foram recompensandos com um caminho que os coloca a um duelo entre si de disputarem uma final histórica. Para os encarnados porque significava voltar a 1990, com o plus de que na era Champions League com mais de um representante por país apenas o FC Porto conseguiu ir até ao último jogo da competição fora das big 5, e os napolitanos porque nem com Maradona conseguiram sequer chegar tão longe na prova.
A temporada europeia do Benfica pode perfeitamente terminar aos pés do Inter - responsável por uma das mais injustas e dolorosas derrotas numa final europeia de que há memória - e não ser um fracasso em absoluto mas só a possibilidade real de imaginar o clube da Luz a lutar por um lugar no jogo mais importante do futebol mundial diz muito da mudança de mentalidade no clube e no papel que o seu treinador teve ao operar essa metamorfose.
Muitos dos jogadores que hoje fazem parte do onze estavam na época passado e até Enzo, o elemento diferencial da primeira volta, está agora ausente e a sua falta não tem sido notada. Mesmo Draxler ou Guedes, empréstimos que serviriam para dar um upgrade à equipa, têm sido ausência por questões físicas e ninguém parece dar pela sua falta verdadeiramente. Isso só se explica porque a ideia e o grupo passaram a estar à frente das individualidades. E no futebol moderno só se construem projectos ganhadores quando todos remam atrás de um só objectivo a partir de uma ideia. Pode demorar mais ou menos tempo, ser necessário adaptá-la melhor ou pior segundo as circunstâncias. Mas tem de estar lá. Hoje o Benfica tem uma ideia. Tem um timoneiro. E tem um plano. E todo ele gravita à volta da audácia. E a audácia recompensa os que nela acreditam. E poucos clubes sabem isso tão bem como o das águias.
Muitos parabéns
Muito bom texto parabéns ao autor 👏