O lodo
Entre variáveis de transferências e troféus fictícios o futebol português voltou de férias da mesma forma que se foi, envolvido num lodaçal permanente que ninguém parece ter interesse em limpar.
Um órgão de comunicação oficial decidiu pegar num comunicado de um clube para os seus adeptos e fazer disso uma notícia falsa. Podia ter acontecido em qualquer lado do mundo - as fake news estão na ordem do dia há muitos anos - mas não surpreende ninguém que tenha sido aqui. Que uma instituição de interesse público, como é um clube de futebol, detenha um órgão de comunicação de dimensão regional, sempre foi algo difícil de entender. Que esse espaço, que tem óptimos trabalhos na área do jornalismo e do entretenimento para além da sua faceta clubística, se tenha dedicado a entrar no lodaçal das guerrinhas de trincheiras dos clubes portugueses, é um pouco mais triste.
Dizia o Sporting num comunicado a celebrar ter atingido o seu objectivo de venda de “gamebox” para a próxima temporada, que esse feito significava a conquista do primeiro “título” da temporada desportiva. No primeiro ano pós-COVID é fundamental para os clubes entenderem onde estão. A esmagadora maioria subiu os preços dos lugares anuais e veio de um ano num modelo híbrido onde ficou patente o evidente divórcio entre espectadores e lotações. O próprio Sporting, que chegava com o primeiro título de campeão em dezanove anos, não teve provavelmente o apoio de adeptos de forma presencial que esperaria, um fenómeno que acabou por ser transversal.
Para a economia dos clubes, para as dinâmicas de grupo, ter adeptos nos estádios é fundamental e apesar de que, na realidade, as instituições pouco se importam com o seu bem estar - horários proibitivos, preços fora de mercado, imposições aos adeptos dos grupos organizados ou visitantes na utilização de indumentárias, adereços ou tarjas de apoio - não deixam de ser um elemento nuclear da equação. Superar as expectativas gera uma euforia natural e o foco do comentário da newsletter leonina era evidente. Para todos menos para aqueles que passam as horas do dia à procura de novas artimanhas, novas formas de sujar tudo o que tenha a ver com o nosso futebol, com a clara cumplicidade das autoridades - Federação, Liga, governo em última instância - e também com evidente impunidade.
Noticiou o Porto Canal que o Sporting se adjudicava um título que só estará em disputa a finais de Julho entre FC Porto e Tondela, a Supertaça Cândido de Oliveira, provavelmente aproveitando a ironia de que os leões viram perdidos os quatro títulos que se auto adjudicaram do historial do Campeonato de Portugal de forma unilateral, depois do parecer dado pela FPF sobre o assunto. Essa “notícia” não veio na habitual newsletter emitida pelo clube aos adeptos, espaço habitual para esse tipo de discurso e transversal a outros clubes, mas sim a partir do próprio órgão de comunicação que devia operar, teoricamente, de forma independente. Era talvez necessário aumentar a dose de ruido e confrontação, à medida que os protestos dos sócios e adeptos do clube com a venda dos seus principais activos e o posicionamento de outras figuras históricas do clube para umas futuras eleições, se vai fazendo notar cada vez mais.
Estrategicamente o mesmo canal programou uma entrevista com o presidente dos azuis-e-brancos na mesma linha, espaço onde se debateu, entre tanto surrealismo mágico, outro dos assuntos que mais têm contribuído estes dias para o lodaçal pátrio.
Na última década têm-se prodigado os casos em todo o mundo de negócios de jogadores envolvendo bónus e pagamentos com base em objectivos. Uma forma de contabilidade para maquilhar números, acertar posições e facilitar negócios cujos valores líquidos são difíceis de suportar. Dependendo do negócio e da forma como foi conduzido podem ser objectivos impossíveis - o clássico para inglês ver - fáceis ou potencialmente exequíveis. Todos eles cumprem uma lógica e até os jogos de simulação de computador os incluem regularmente como ferramenta. Não apanha ninguém desprevenido. Entre esses objectivos está o de recompensar o clube vendedor com um bónus se o jogador for internacional, vencer prémios individuais, vencer prémios europeus ou vencer competições nacionais.
Foi essa última a modalidade eleita entre António Salvador e Jorge Nuno Pinto da Costa para desenhar o negócio milionário que envolveu a transferência de David Carmo para o Dragão, um prémio por cada título conquistado pelo FC Porto durante os anos de contrato. Imediatamente as mesmas vozes que vivem para rastrear o lixo do nosso futebol, entre cafés, tascas e bares noturnos, com outras cores desta vez, decidiram impugnar à partida qualquer triunfo dos azuis-e-brancos se esse viesse acompanhado de uma possível vitória sobre o Braga porque esses pontos estavam implicitamente oferecidos no negócio.
“Cuida o ladrão que todos são da sua condição” é um belo refrão popular que se adapta a esta cultura tão habitual no nosso futebol. Um negócio está sempre sobre suspeita. Um empréstimo de um jogador por parte de um clube grande esconde sempre pontos vendidos, um auto-golo inesperado um futuro e chorudo negócio. Tudo tem a sua versão de “upside down”, que diriam em Stranger Things, e todo esse relato é alimentado pelas mesmas vozes, com a cumplicidade dos que lhe dão palco, sejam os clubes ou os órgãos de comunicação social que se beneficiam desse lodo para obter audiências, vender jornais ou conseguir cliques.
Nem é preciso recuar à venda de Marcus Edwards ao Sporting, há cinco meses, para encontrar uma cláusula similar num negócio de caracteristicas idênticas entre clubes pátrios e que já se multiplicou em inúmeras ocasiões. Basta ir até à última jornada da Premier League, um torneio que todos parecem admirar de forma incontestada, em que tanto o Liverpool como o City jogavam contra clubes que só tinham a ganhar com o facto dos seus rivais saírem vencedores. O City teria de pagar uma pequena fortuna ao Aston Villa se fosse campeão como parte do negócio de Jack Grealish do verão anterior enquanto que o Wolverampton ainda tinha dinheiro a receber do Liverpool pelo mesmo motivo como resultado da transferência de Diogo Jota.
Naturalmente ambos os jogos teriam sido analisados ao detalhe pelos programas de televisão em Portugal e seriam vilipendiados em comunicados de directores de comunicação treinados para fazer sangue e em capas de jornais habituados ao dramatismo, tivessem acontecido no lodaçal português. Em Inglaterra foram fait-divers, pequenas chalaças, dentro de algo maior que é a disputa pelo título de campeão nacional. Do prazer pelo jogo.
Portugal está determinado a viver no lodo social, político e económico em múltiplos aspectos da sua existência como nação e sociedade. O desporto não é particularmente diferente. Mas dada a sua importância social mais do que evidente, é um espelho muito fiel dessa mentalidade autodestrutiva. Que siga nesse caminho com impunidade reflecte a falta de cultura cívica transversal ao resto da sociedade. A bola ainda nem sequer rola de forma oficial e já há motivos para impugnar todos os possíveis cenários do próximo campeonato nacional. E isso também é culpa de cada um de nós.
Da mesma forma que somos socialmente responsáveis por cuidar de um sistema democrático mais além de participar no processo eleitoral de tantos em tantos anos, também é responsabilidade - e consequência - de como nós, como adeptos, vivemos o jogo em múltiplas esferas o cenário em que nos movemos.
Fossem os emails do “Polvo” ou as recordações de campeonatos passados do Benfica, a cultura de associar todos os êxitos do FC Porto à prostituição e tráfico de influências ou de colar o Sporting a uma cultura de interesses da banca e das famílias mais influentes da capital, o certo é que todos os adeptos fizeram, em algum momento da sua vida, sua essa luta. Sopraram-lhe vida dentro, fosse em conversas com amigos, em comentários em redes sociais ou durante os jogos.
Há muito tempo que em Portugal se trocou a rivalidade pelo ódio visceral e essa mudança pode ter vindo de cima para baixo mas encontrou na base um público receptivo. Os bons contra os maus, o contra tudo e contra todos, os prejudicados contra os beneficiados. Cada clube tem a sua liturgia e cada adepto acredita que apoia uma equipa que é, pelo motivo que seja, historicamente perseguida e prejudicada, tenha quase 40 títulos ou 20, como se fosse possível triunfar tanto durante tanto tempo contra ventos e marés.
Os jornais, que eram bi semanais quando tinham uma dimensão desportiva, passaram a ser diários quando sentiram que podiam viver dessa cultura. Os programas de televisão privada que procuravam o show televisivo arrumaram com a cultura do Domingo Desportivo. Os blogues irromperam com uma cultura de insulto fácil e perseguição de que todos, eu incluído, fizemos parte e alimentamos. Só depois disso é que apareceram os famigerados directores de comunicação com os seus altifalantes de ódio. Hoje Carmo. Ontem Renato Sanches. Anteontem Alcochete. O importante era falar e falar mal. Mas foram os últimos a aterrar. O palco já estava montado e os espectadores já faziam fila para o seguinte espectáculo.
Esses espectadores têm o poder de saírem quando querem. De deixarem os que vivem de microfone a falar sós. Da mesma forma que as claques, simbolicamente, em momentos de crise comos clubes simulam sair durante o jogo - ou entrar mais tarde - também os adeptos sabem que sem eles qualquer discurso de ódio desaparece, até porque todos aqueles que vociferam insultos, denúncias e alimentam polémicas são os primeiros que se sentam à mesa para jantar para negociar o próximo negócio que os vá beneficiar a todos.
O dia quando amanhece traz sempre consigo novas oportunidades. No lodo a luz nem chega a penetrar. Todos os parasitas que se alimentam dele vivem na penumbra e na escuridão continuarão a ficar. O adepto tem o poder de decidir se prefere meter a cabeça debaixo da terra e contar minhocas ou deixar-se levar pela luminosidade de quem sabe o que o futebol realmente pode representar. A escolha está lá por muito que a toxicidade mediática nem sempre a deixe ver. Ninguém disse que ia ser fácil. O que ninguém pode dizer é que seja impossível.