O homem que inventou o futebol que vocês odeiam (ou amam)
Silvio Berlusconi morreu. Poucos nomes foram tão polémicos e importantes ao mesmo tempo. Da sua cabeça saiu a base do que é o futebol moderno, com tudo o que isso implica. Um reflexo de quem foi,
Il Cavalieri utilizou o dia do jogo entre a Itália e a Bulgária, as meias-finais do Mundial de 1994, para conseguir aprovar uma lei que protegia judicialmente o seu governo da campanha movida pelo grupo de juizes da Procuradoria de Milão, liderados pelo mediático Di Pietro. Com o país distraído pelos golos de Roberto Baggio, a legislação passou com o apoio da Lega Nord, um partido de extrema-direita, secessionista que não conseguia negar ajuda ao homem que tinha levado o Milan ao topo do mundo. Grande parte dos seus deputados eram também rossoneri convictos. Claro que Berlusconi já tinha chegado ao poder apoiado por um partido recém formado a partir das bases dos departamentos de marketing e publicidade da sua companhia Finivest que tinha o mesmo nome do cântico futebolistico mais repetido do país: Forza Italia.
Berlusconi era isto e muito mais. Nunca ninguém entendeu tão bem a relação entre futebol e política num estado democrático. Houve Presidentes de clubes com um curriculo maior que o seu, mais magnéticos que ele e até com mais polémicas às costas. Mas dificilmente houve ou haverá outro Berlusconi. O homem que sonhava com ser gangster, passou a cantor de variações em cruzeiros e renasceu como empresário dos media, chegou ao futebol porque viu o futuro. Mais do que o ver, desenhou-o. Tudo o que aconteceu no futebol a partir dos anos noventa está intimamente ligada ao que foi e o que queria o italiano. E por isso é impossível encontrar pessoas tão relevantes na evolução do jogo. Berlusconi está ao lado de Bernabeu no que diz respeito ao impacto na criação de um império no terreno de jogo mas também de Havelange quando se fala dos meandros do beautiful game. E por isso é impossível separar a sua figura de dono do AC Milan - o Presidente, ao contrário do que se lê habitualmente por aí, nunca foi ele mas sim Adriano Galliani - da de primeiro-ministro italiano, do homem que realizava festas com adolescentes desde os anos oitenta até aos 2000s aquele que dizia aos treinadores que jogadores usar e que não. Porque o fazia e raramente se enganava, tal era o seu faro para o jogo e tudo o que o rodeava.
Berlusconi comprou o Milan porque lhe convinha.
Já tinha entrado em contacto com o mundo do futebol quando o seu canal Tele5 comprou os direitos de transmissão, em 1980, do Mundialito disputado no Uruguai, um torneio entre campeões do Mundo que serviu para massajar a ditadura política local dois anos depois da Argentina ter feito o mesmo com o Mundial. Berlusca entendeu aí que o futebol e a televisão estavam intimamente ligados e essa ideia nunca mais saiu da sua mente. Desenhou nesses anos o futuro numa altura em que no Reino Unido os jogos em directo eram raros e os clubes protestavam com as televisões com medo a perder as tão importantes receitas de bilheteira. Berlusconi percebeu que todos pensavam pequeno. Que pouco se podia ganhar com adeptos no estádio em comparação com audiências nacionais (ou globais) e acordos de publicidade inerentes a essa exposição. A pensar nisso potenciou ele o Mundialito de Clubes que decorreu nos anos seguintes em Milão, uma especie de torneio de pré-época que antecipou aqueles que hoje se disputam nos Estados Unidos ou Ásia. Quando o Milan, na ruina depois de uma despromoção administrativo por estar envolvido no Calciopoli, apareceu no seu caminho, não olhou para trás. Comprou o clube e utilizou-o como plataforma para as suas ideias. E como vencia, todos passaram a acreditar que ele estava realmente certo.
Berlusconi fez do Milan um clube diferente.
Numa era onde o profissionalismo distava muito do que conhecemos hoje, investiu em infra-estruturas, remodelou Milanello, contratou os melhores preparadores, médicos e analistas como se estivesse num processo de seleção de publicistas. Entendendo como poucos o poder da imagem, recordou o impacto que lhe causou o futebol holandês e decidiu gastar pequenas fortunas para juntar os três melhores jogadores do país na altura em San Siro. Cada um chegou num ano diferente e teve um impacto particular. Gullit liderou o ataque ao primeiro Scudetto em sete anos. Van Basten apareceu sobretudo na sua segunda temporada, depois de ter estado a anterior praticamente lesionado, e Rijkaard chegou para completar o puzzle. À sua volta a nata da formação local e um treinador que ninguém conhecia mas cujo o faro de Berlusconi lhe disse que era especial: Arrigo Sacchi.
Quando Sacchi e os jogadores se fartaram uns dos outros, Berlusconi voltou a demonstrar ter olho e resgatou o treinador das reservas, um tal de Fabio Capello, para dar continuidade ao legado anterior. Entre os dois treinadores o Milan viveu oito anos em que foi, indiscutivelmente, a melhor equipa do mundo. Três titulos continentais, quatro Scudettos, duas Coppa Italia e uma coleção de momentos e jogadores para a posteridade. Depois de um breve interregno, Berlusconi recuperou o seu faro e encontrou em Ancelotti, um treinador desprezado pela Juventus, um digno sucessor dos anteriores, para guiar o seu projecto à sua última etapa dourada. Mas mais do que vencer em campo, Berlusconi desenhou o que se passava fora dele.
Sua foi a primeira ideia de uma Superliga, um torneio que se dividiria em quatro divisões - uma Premier League seguida de três divisões regionais - que substituiria a Taça dos Campeões Europeus, tal como tinha idealizado Hanot anos antes. Depois de ver como Real Madrid e Napoli, campeões dos dois torneios mais importantes da Europa, eram forçados a jogar um contra o outro na primeira eliminatória da Taça dos Campeões de 1988, entendeu que não fazia sentido nenhum que um clube gigante ficasse fora tão cedo da prova mais importante do ano. Graças aos seus protestos a UEFA foi forçada a criar o sistema de coficientes para definir cabeças de serie, até então inexistente. A Superliga não avançou tal como Berlusconi pretendia mas grande parte das suas ideias foram apoiadas por outros Presidentes, como Ramon Mendoza do Real Madrid, e serviram de base para a Champions League, um projecto que tinha tanto de futebol como de publicidade e televisão, as duas áreas que Berlusconi conhecia melhor do que ninguém. Foi também graças a pressões do magnate que a UEFA acabou por ceder e foi permitindo ampliar as vagas por países, a única forma que Berlusconi tinha de garantir que o seu Milan competiria sempre na prova, independentemente de vencer ou não o Scudetto.
Paralelamente, Berlusconi foi o primeiro dono de um clube a acreditar na ideia dos super-planteis, tão de moda hoje em dia. Quando ainda só se permitiam jogar três futebolistas estrangeiros, Berlusconi montou uma constelação de estrelas que oferecia ao treinador de então, Fabio Capello, uma lista infinita de jogadores de sonho, fossem eles van Basten, Rijkaard, Gullit, Papin, Savicevic, Boban ou Brian Laudrup. O plantel do Milan da temporada 1992/93 ainda é, hoje em dia, talvez o mais forte da história. Essa decisão abriu os olhos a outros clubes e ajudou a aumentar as pressões sobre as federações sobre a decisão de abolir o limite de jogador estrangeiros, que tomou forma em 1995. Para cumprir com a normativa comunitária, o limite passou a ser apenas para jogadores nascidos fora do espaço ocupado pelos países da União Europeia. Berlusconi foi também o primeiro presidente a aproveitar-se da lei Bosman, entendendo antes que todos que o poder de negociação tinha mudado e os jogadores tinham agora uma palavra a dizer. Derrotado em campo pelo Ajax, venceu-o nas mesas de negociação convencendo Edgard Davids - e mais tarde Reiziger e Kluivert - a sairem de Amsterdão a custo zero para vestir a camisola dos rossoneri.
Mas Berlusconi foi ainda mais longe quando transformou o seu clube num projecto de marketing que acabou para o catapultar para a vida politica, uma ideia que inspirou o sportwashing dos magnates russos e das ditaduras árabes nos anos seguintes, países com os quais sempre manteve excelentes relações enquanto político. E claro, provavelmente nunca existiria Donald Trump se não tivesse existido antes Berlusconi, o homem que entendeu como poucos como manipular as massas desde o seu império televisivo e mediático. Também lhe devemos a mudança do paradigma do discurso à volta do futebol que tanto desgastaram a paixão de muitos pelo jogo. Foram os seus canais de televisão que lançaram uma guerra contra os programas de debate clássicos do canal estatal RAI, mais focados em resumos e no debate sobre o jogo, favorecendo as polémicas arbitrais, as especulações no mercado de transferência e utilizando sempre tertulianos que tinham mais apetite pelo grito e pelo tribalismo que conhecimento do jogo. Pelo meio sempre apareciam mulheres, muitas mulheres, mas longe de terem ali uma plataforma para a afirmação dos seus conhecimentos, o seu papel era meramente estético, quase sempre acompanhado por decotes gigantescos e saias ou vestidos diminutos. Homens gritando entre si sobre um fora-de-jogo ao mesmo tempo que outros homens em casa babeavam ao ver a apresentadora era algo que o mundo do futebol nunca tinha visto. Hoje tornou-se a moda em grande parte dos países latinos, sobretudo.
Berlusconi venceu muito. Com ele o Milan tornou-se o clube mais importante do mundo e apesar de não ter ultrapassado a Juventus em Scudettos, passou a ser a segunda força continental, só atrás do Real Madrid. Em 2007, quando venceu a sua quinta Champions - tendo perdido outras três finais - o clube somava sete troféus, pelos nove dos merengues. Mas esse foi o fim da sua era. Já nem tinha a idade nem o dinheiro para competir com os milhões que começavam a inundar a Premier. A carreira política tinha destroçado definitivamente o que restava da sua credibilidade e a mudança dos tempos já não olhava com a mesma condescendência para o seu universo de bunga-bunga e negócios escuros. O futebol tinha crescido a partir das suas ideias para se transformar em algo diferente, algo que seguramente o manteve sempre orgulhoso. Mas também já não precisava de Berlusconi para nada e o seu papel mingou até desaparecer. A sua dependência pelo jogo e a adrenalina que este provocava era tal que até tentou um comeback com o projecto Monza, mas todos sabiam já que do mitico Il Cavalieri já só sobrava uma caricatura.
O que é inegável é que tudo aquilo que se transformou em motivo de ódio para os adeptos mais hardcore partiu, quase na sua totalidade, da sua cabeça. Para uns essa transformação do futebol num espectáculo hedonista, focado na televisão, no universo comercial e na cultura do ódio tribal é o passo inevitável do triunfo capitalista dos anos noventa, algo que Berlusconi antecipou mas que seria inevitável, de todas formas. Talvez o seja. Mas o que não se pode negar é o faro para antecipar tendências que foram desde a instalação de bebidas a preços exorbitantes nos estádios proibindo comida externa, a aposta no papel sexualizado da mulher nos campos de futebol a seguir o modelo americano das cheerleaders ou a tentativa de utilizar o mercado de transferências como elemento massajador do ego dos adeptos na ausência de resultados desportivos. Tudo isso era ou inexistente ou residual até à sua chegada a San Siro. Desde então transformou-se na norma. Os avanços tecnológicos ajudaram a confirmar o poder das televisões sobre os adeptos dos estádios, o peso da sociedade capitalista forçou a UEFA a aceitar torneios com uma dimensão mais comercial, a liberalização sexual dos anos noventa tinha de chegar mais tarde ou mais cedo às televisões e ao mundo do futebol e a mudança legislativa comunitária revolucionou o mercado já por si mesmo. Mas só um homem esteve em todos esses passos, ao mesmo tempo e sempre do lado vencedor. Detestável em tantas coisas, Silvio Berlusconi foi também um revolucionário. E por isso merece ser amado ou odiado, dependendo de que lado da barricada se olhe. Porque, se alguém adorava barricadas, fosse no futebol ou na politica, esse alguém era ele. No fundo, até nisso nos ganhou a todos.
Mais um grande artigo sobre uma figura polémica. Muito bem escrito, muito equilibrado na análise! Excelente. Obrigado