O fim da Taça que nunca existiu
Que sentido faz ter uma competição que não cumpre o objectivo desportivo da igualdade e o objectivo económico de quem a organiza? A Taça da Liga há muito que é uma prova redundante.
O plano televisivo não podia ser mais esclarecedor. Naquela que será, muito provavelmente, a última edição da final four da Taça da Liga em território nacional, o presidente da Liga de Clubes olhava para o chão, não conseguindo esconder a sensação de fracasso. Afinal de contas, Pedro Proença está a tentar desmontar e destruir o torneio há uns bons largos anos - com a cumplicidade dos clubes, naturalmente, que a Liga não tem qualquer poder real no futebol português - e vai ter de explicar agora aos sauditas o interesse em ter uma eventual final Estoril vs Sporting de Braga numa edição futura. A realidade da Taça da Liga, presente e futura, é um reflexo do nosso futebol, dos nossos complexos e da nossa forma de viver o jogo, um perfeito caleidoscópio da identidade do futebol português.
Numa altura em que se luta cada vez mais por evitar que os direitos humanos mais básicos sejam atropelados, o futebol decidiu fazer o caminho inverso e entregar-se de peito aberto aos milhões pagos por regimes ditatoriais que encontram no jogo, precisamente, a melhor forma de lavar a sua imagem. As negociações com um país como a Arábia Saudita não diferem das que outras ligas do sul da Europa têm feito - curiosamente no norte isso não sucede até porque existe uma maior fiscalização por parte dos adeptos e do poder político - mas não deixa de ser paradigmático que uma Liga profissional que diz defender uma série de valores importantes seja depois capaz de os esconder debaixo do tapete por um contrato para três jogos. A julgar pelas bancadas de Riade durante as Supertaças de Espanha e, sobretudo, Itália, ao que podemos juntar a pobre média de 9 mil espectadores por jogo na liga saudita, é muito dificil imaginar que mais de vinte mil pessoas se decidam a ver três duelos de clubes portugueses em Janeiro do próximo ano.
A mesma Liga que começou uma fortissima campanha de lavagem de imagem com adulteração de dados, textos institucionais repletos de falsidades e falácias para tentar demonstrar que está preocupada com os adeptos e as assistências nos estádios está agora preparada para levar um torneio para as Arábias onde, sabem bem, nem uma centena de adeptos portugueses se deslocará para seguir as suas equipas. Mesmo numa cidade como Leiria, a pouco mais de uma hora de carro da capital, de onde vinham três dos quatro finalistas - em Braga houve um boicote das claques à final four e não se esperavam mais do que as poucas centenas que apareceram - as bancadas estiveram bem longe dos sold out que a Liga tentou vender como outro simbolo de sucesso. Não foi. As imagens da televisão tentaram esconder mas os adeptos presentes nas redes sociais claramente mostraram um panorama desolador que não difere muito do vivido noutros anos. Um torneio incapaz de mobilizar adeptos em massa que será transferido por meia dúzia de tostões para um país que não conhece, quer saber ou atrairá novos adeptos para uma prova organizada por um grupo de pessoas que tenta cada semana afirmar que os adeptos estão em primeiro lugar.
E aí está parte do problema.
Sabemos que os adeptos importam à Liga absolutamente nada. Sempre foi assim e sempre o será. A Liga é uma organização criada para defender os direitos dos clubes inscritos nas provas profissionais e tem-se sempre guiado por esse critério, o que em parte explica a sua falta de poder e também o seu desnorte já que habitualmente cai na teia de interesses que movem uns clubes ou outros. A campanha mediática à volta da Taça da Liga ou de voltar a trazer os adeptos aos estádios não é só mais um reflexo de uma forma de fazer política activista, lançando hashtags, campanhas de marketing amparadas em projectos audiovisuais novos com vontade de triunfar e celebridades associadas a marcas para dar um pouco de sabor a algo que de futebol tem cada vez menos.
Adulterar números de espectadores, jogar com conceitos como médias quando somos e seremos sempre um país de discrepâncias e assimetrias gigantescas, enquadra-se dentro da falácia que pauta a forma de governar da instituição. Mas a Taça da Liga vai mais longe porque é uma prova que serve de balão de oxigênio para a Liga e importa muito pouco aos clubes. Quase tão pouco como aos adeptos.
Para os esquecidos, que já lá vão quase vinte anos, em 2006 a prova foi criada para dar aos clubes jogos que compensariam no calendário a redução dos campeonatos profissionais de 18 a 16 equipas. Esses jogos dariam receitas de bilheteira, televisão, possibilidade de ter mais uma casa cheia contra os grandes mas vinham da mão de uma série de politicas ambiciosas como a necessidade de dar prioridade a futebolistas da formação. Era uma boa ideia que nasceu torta, desde logo porque foi a única Taça da Liga da história do futebol europeu que não garantia um lugar nas competições continentais, mas também pelo formato que foi sofrendo sucessivas alterações. Quase como para demonstrar o que seria a prova, a primeira edição disputada num estádio do Algarve semi-vazio - a ideia de potenciar as infra-estruturas do Euro 2004 esteve sempre presente - foi ganha pelo Vitória FC em penaltis contra o Sporting.
Os Grandes, na sua luta pessoal por aumentar o palmarés, lá mostraram o seu interesse nos anos seguintes mas isso nunca fez da prova relevante. E quando as provas regulares voltaram aos 18 clubes e se eliminou a obrigatoriedade de alinhar um determinado número de futebolistas da formação, a competição perdeu todo o sentido e tornou-se apenas em mais um empecilho num calendário que se ia apertando cada vez mais. Uma organização sensata teria colocado ponto final na experiência, como fizeram em França (onde a prova dava um lugar na Taça UEFA). Mas a Liga portuguesa precisava da Taça da Liga para ter o seu momento de glória.
Com o excelente trabalho da Federação na revitalização da Taça de Portugal e nas competições sobre a sua alçada - o aparecimento do canal 11 deu o empurrão final - mas também com a Supertaça, a Liga de Clubes viu-se reduzida quase a uma insignificância social que há muito quer combater para fazer sentir que é relevante. Uma nova sede, uma politica de apoio à imprensa desportiva e vários projectos online e, naturalmente, um novo ruido à volta da sua competição, primeiro com o rebranding de “Campeão de Inverno” e depois com a criação do formato de Final Four, após a enésima remodelação dos quadros. O formato é um fracasso como continua a ser o torneio o que levou a Liga a um beco sem saída. Com a anuência dos clubes - de todos, até dos que depois eventualmente se queixarão - preparam um novo modelo em que apenas os seis primeiros classificados da Primeira Liga e os dois primeiros da Segunda Liga terão acesso a participar. Uma ronda preliminar - sempre em casa dos Grandes, o que acaba com a receita dos “modestos” - e uma fase final longe de aqui. Um torneio tão distópico como a mente daqueles que o organizam.
Chegado a esse momento ficam evidentes três coisas.
A primeira, e mais notória, é a ausência de sentido competitivo de um torneio que passou de ser de todos os clubes profissionais para fomentar receitas e formação para converter-se numa celebração da elite. Até para as próprias “elites” que vão ter mais jogos europeus do que nunca a partir do próximo ano e olham para uma prova sem recompensa real como um problema, mais do que uma solução.
A segunda é o total desinteresse por parte da Liga e dos próprios clubes nos adeptos de futebol em Portugal. Não é nada de novo e reflecte bem a ethos do jogo neste país. Os clubes porque cada vez mais tomaram a deriva corporativa de grandes multinacionais que ainda trabalham com metodologias datadas mas onde o adepto core tem um peso cada vez menor. O da Liga porque favorecem influencers, hashtags e negócios turvos que possam continuar a alimentar a organização (só comparável com as ridiculas multas aplicadas a cada jornada e que pagam os salários de muita gente) enquanto preconizam um jogo de todos para todos.
Por fim, fica mais do que claro o que é o futebol português na sua essência. Um país com uma riqueza enorme, como tem demonstrado na sucessiva e constante produção de talento dentro e fora do relvado. Com clubes com um historial impressionante para a sua realidade económica capazes de surpreender tudo e todos como fez o Estoril nesta edição (ou o Moreirense, Rio Ave e o próprio Vitória FC no passado) mas que são permanentemente ignorados e diminuidos por aqueles que deviam ser responsáveis por fazê-los crescer aos olhos do mundo. E três instituições que tudo controlam e asfixiam e que, através da Liga, garantem sempre que nada é feito para colocar em perigo o seu status quo. A final da edição da Taça da Liga de 2023/24 é apenas a segunda na história da prova sem um “Grande”. E a perfeita despedida para uma prova que se vai converter noutra coisa a partir do próximo ano. Mais próxima talvez da essência do que é o futebol português e mais distante ainda daquilo a que deveria aspirar a ser.