O duelo entre os herdeiros do Pedrotismo
André Villas-Boas reclama ser o herdeiro emocional do "Pedrotismo" na sua anunciada candidatura. Pinto da Costa continua a repetir uma das máximas do Zé do Boné, 45 anos depois. Quem tem razão?
Na cerimónia de apresentação da candidatura à presidência do FC Porto, o antigo treinador dos azuis-e-brancos André Villas-Boas citou uma das mais célebres frases proferidas pelo homem que foi, mais que qualquer outro, o verdadeiro refundador do Futebol Clube do Porto, tal como hoje o conhecemos. Diante da viuva de José Maria Pedroto, D. Cecilia, o aspirante a uma nova cadeira de sonho recordou as palavras do célebre “Zé do Boné” proferidas há mais de quarenta anos e ditas a pensar, ironias das ironias, em Jorge Nuno Pinto da Costa.
À época Pedroto era o baluarte do “Portismo”, Pinto da Costa um aprendiz aplicado e na tensa luta de poder contra uma forma de liderar o clube que se preocupava mais com a imagem pública do que com os interesses da instituição protagonizada por Américo de Sá, o treinador falou sobre a necessidade de dar espaço aos novos. De abrir caminho aos que traziam ideias de futuro e os que combateriam a estagnação em que o clube se iria perpetuar com homens como o presidente de então que era também deputado do CDS na Assembleia da República e não gostava do discurso contra o centralismo dos seus homens fortes no futebol.
Enquanto a dupla Pedroto-Pinto da Costa venceu - e fê-lo nos três primeiros anos em conjunto, primeiro com uma Taça de Portugal e depois com dois campeonatos consecutivos - o Presidente não tinha margem para actuar mas no final da época 1979/80 com derrotas na liga e na Taça frente a Sporting e Benfica, encontrou o pretexto para eliminar ambos. Só que o Porto tinha mudado e tinha-o feito graças a Pedroto, que já em 1967 tinha sido expulso e banido de sócio em Assembleia Geral por defender ideias que dez anos depois se revelaram certeiras e deram o pontapé de saída para o FC Porto moderno. E se em 1967, ainda seccionista no hóquei depois de uma passagem pelo boxe, Pinto da Costa era ainda espectador, uma década depois tinha-se transformado em actor secundário de luxo.
Quis Villas-Boas enaltecer o espirito vanguardista de Pedroto para anunciar-se como o futuro. O homem que trará o modernismo e actualizará as boas práticas governativas de que o clube carece há largos anos. E razão não lhe falta. Os números financeiros, a forma decrépita como as infra-estruturas do clube são tratadas, a ausência de projectos ambiciosos para a formação ou para as modalidades e o progressivo desinvestimento são demasiado evidentes para sócios, simpatizantes e até rivais. O FC Porto é um clube gerido em 2024 como se estivessemos em 1990. Porque é, em parte, um clube gerido por pessoas dessa geração que não se souberam actualizar mas também porque o FC Porto de 1990 interpretava, como ninguém, outra das máximas do Pedrotismo, o “nós contra eles”.
Porque se Villas-Boas é sem dúvida um arauto das boas práticas e dos pensamentos mais puros e genuinos de José Maria Pedroto, Pinto da Costa é o interprete perfeito do outro lado do Mestre, o homem que devolveu o orgulho e o carácter a um clube amolecido pelos tempos e que lhe incutiu uma mentalidade de guerrilha para sobreviver, primeiro, e prosperar depois.
A cartilha do Pintocostismo não é mais que um curso de Pedrotismo avançado. Era-o em 1982 quando Jorge Nuno Pinto da Costa, demitido de Director-Desportivo e lider da oposição na sombra, decidiu avançar com uma candidatura contra o antigo presidente Afonso Pinto de Magalhães (que prontamente se retirou) e é-o hoje. Porque Pedroto foi quem tirou o medo de cruzar a ponte da Arrábida aos jogadores e o medo de estar com um ponto de avanço de Águias e Leões que todos os adeptos sentiam. O fatalismo do Porto dos anos sessenta e parte da década de setenta foi varrido pela sua determinação, pela qualidade do futebol das suas equipas - eximias a defender, letais a atacar - mas também pela forma virulenta e ácida como disparava em todas as direções. O Pedroto treinador abriu hostilidades contra o seleccionador nacional, a Federação, os clubes rivais, as autoridades desportivas e políticas no mundo imediatamente a seguir ao 25 de Abril e até à imprensa.
Criou uma cultura de balneário fechado, uma barreira entre sócios e plantel e entre dirigentes e jogadores e equipa técnica. Foi sua a responsabilidade de modernizar o clube e o papel que tinha pensado para si próprio de Manager, com Artur Jorge como treinador, apenas teria reforçado tudo isso não o tivesse levado o cancro cedo demais. Pinto da Costa, com uma oratória soberba e um espirito guerrilheiro único, apenas deu continuinidade a um plano há muito traçado e imortalizou esse espirito no ADN dos Dragões até hoje. E por isso, tanto como pelos títulos, foi amado, respeitado e admirado pelos sócios e adeptos portistas como nenhum outro e também temido pelos rivais como só Eusebio no relvado conseguiu ser. A sua longevidade deu-lhe uma importância histórica superior à de Pedroto, especialmente para as gerações que já nasceram sob o seu larguissimo mandato. Mas o actual presidente do clube não inventou nada e ele também reclama, justamente, a herança pedrotiana.
O enorme problema com que se encontra Jorge Nuno Pinto da Costa e muito dos seus acólitos - sejam capazes de dar-se conta ou não - é que ele representa apenas um lado do Pedrotismo da mesma forma que André Villas-Boas, em discurso e em formas, apenas parece representar o outro lado. Só que estamos em 2024 e não em 1990. Se o Pedroto mais guerrilheiro era ainda necessário numa altura em que o maior rival dos Dragões era ainda tão forte que disputava duas finais da Taça dos Campeões Europeus em três anos, em 2024 torna-se absolutamente irrelevante.
O futebol mudou. O futebol português também. Não se pode ser contra o sistema quando se é o sistema. Quando se venceu mais do que todos os outros clubes juntos nos últimos quarenta anos. Quando se é um clube respeitado pela elite continental, se venceu títulos europeus e se transformou em recordista de receitas em vendas de jogadores. O FC Porto pode queixar-se de muitas coisas até porque Portugal continua a ser um país centralista - algo que o futebol nunca mudará - e a banca nacional pode estar menos interessada em emprestar dinheiro ao clube do que aos seus rivais, mas o que não pode é justificar uma permanente atitude de guerrilha contra um pretenso sistema quando se é um vencedor crónico. O discurso cristalizado da actual direção continua a encontrar muito eco na massa adepta simplesmente porque é o único que conhecem e o associam aos melhores anos do clube, por muito que essa etapa já tenha terminado.
É capaz de mobilizar o voto do sócio mais desinformado, daquele que se foca sobretudo nos títulos eventualmente conquistados e naqueles que votam pela gratidão de um passado que já não volta. Mas a incapacidade de Pinto da Costa em ser - como foi nos primeiros vinte cinco anos do seu mandato até que o processo Apito Dourado expôs muitas das suas sombras - também o inovador, o vanguardista e o homem que colocava os interesses do clube à frente de tudo, como agora preconiza André Villas-Boas, é o seu grande handicaap.
O jovem candidato presidencial deixou claro que não se vai meter numa luta de lama com o velho patriarca. Não se derrota um mito assim como assim e a campanha de Villas-Boas começou por reconhecer isso mesmo, de aí as palavras elogiosas que sempre sairam da sua boca. Para muitos portistas, os que utilizam essa cultura de ódio como uma injeção de adrenalina, isso transforma-o em alguém manipulável pelo tal “Sistema” e converte-o em refém do populismo que a actual direção precisa de apregoar de “nós contra eles”, dos “bons contra os maus”. Mas é algo inevitável se não se quer desviar a atenção do verdadeiramente importante e daquilo que faz da candidatura de Villas-Boas um dos momentos mais importantes da história recente do clube, a necessidade de se adaptar aos tempos.
O candidato poderá nem sequer ser capaz de cumprir todas as suas promessas eleitorais, caso seja eleito - a situação em que se encontrar o clube e os contratos assinados pela calada nas próximas semanas vão ser chave - mas só o facto de existir uma voz que entende que em 2024 um clube da grandeza do FC Porto não poder subsistir apenas com base num discurso de ódio e sim na vanguarda de um movimento associativista, de transparência e de ambição com base no trabalho da formação e no crescimento das modalidades, demonstra que há uma ou mais gerações de adeptos que não estão preparados já para deixar de olhar para o futuro com os cantos de sereia do passado.
Pinto da Costa pode não ter percebido que o único seu que ainda está ligado ao Pedrotismo é exactamente aquilo que o homem de Lamego estava preparado a usar como meio para um fim. André Villas-Boas, pelo contrário, aponta a mira no seu discurso e aparentes intenções precisamente para esse mesmo ponto de chegada, a elevação de um clube a um permanente estadio de busca da excelência utilizando todos os meios necessários.
Em 1990 podia ser necessária a fisga e a bomba. Em 2024 talvez seja só preciso barrar do estádio uns quantos indesejáveis, do palco e das bancadas, adaptar ao presente processos presos nos tempos dos faxes e do Windows 98 e regar com afinco uma flor de futuro no Olival. Talvez a solução esteja menos na comissão a atribuir a um familiar e mais na alegria de um futebolista junior ao perceber que há alguém que pensa nele como um futuro ídolo do Dragão. O futuro é sempre daqueles que olham para lá do amanhã.