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O braço de ferro que pode mudar o futuro do futebol

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Geografia da bola

O braço de ferro que pode mudar o futuro do futebol

Em 1994 o caso de Jean Marc Bosman mudou para sempre a estrutura do futebol moderno. Hoje é no combate aos clubes estado que pode estar a seguinte batalha e a Premier League já deu um passo em frente.

Miguel L. Pereira
Feb 8
6
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O braço de ferro que pode mudar o futuro do futebol

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Durante décadas a grande percepção pública sobre a sociedade italiana, uma percepção que os próprios transalpinos alimentam com regularidade, é a de um espaço comum entregue a uma cultura intrínseca de corrupção. Ela está por todo o lado, nas grandes instituições às pequenas empresas, no espaço público e privado. É uma forma de vida, um entendimento flexível do que é ou não a lei. Para muitos estrangeiros deslocados em Itália, esse é um dos primeiros choques que encontram, quando alguém espera deles uma “ajuda” para libertar uma situação burocrática, acelerar um procedimento ou facilitar uma gestão. Claro que essa realidade é transversal a todos os países e não um mal exclusivo dos italianos mas o que poucos se lembram é que a Itália é também o país onde o sistema judicial é um dos mais valentes do mundo.

Durante os anos oitenta foi o seu sistema judicial que lutou olhos nos olhos com o poder da Mafia, quando todas as outras instituições do país olhavam para o outro lado. Essa decisão custou várias vidas a verdadeiros servidores públicos mas foi apenas a ante-sala do que a mesma justiça fez com um sistema político também ele entregue à corrupção endémica. O caso Tangenpolli e Manno pulite, juntamente com a luta contra o “Polvo” siciliano, marcaram uma geração e deram um sinal claro de que em Itália a corrupção existia, sem dúvidas, mas também estavam lá aqueles dispostos a ir até ao fim para lutar contra ele por todos os meios legais, de uma forma bem mais dura e realista que os filmes de Hollywood.

Naturalmente essa atitude foi transferida ao mundo do futebol. Reflexo da sociedade como nenhuma outra actividade, um dos elementos mais profundos da sociedade italiana, o futebol foi também ele palco recorrente de políticas corruptivas mas foi também onde a justiça fez mais vezes sentir o peso da lei. Em 1980 o Calciopoli foi a primeira grande decisão judicial que abanou as estruturas do Calcio. Puniram-se dezenas de personalidades, muitas que se sentiam intocáveis, de presidentes a futebolistas internacionais, e instituições tão grandes como o AC Milan e SS Lazio, despromovidas sem piedade à Serie B independentemente do seu peso social e político até. Essa situação repetiu-se em 2006 quando a Juventus, a mais poderosa instituição desportiva italiana depois da Ferrari - curiosamente parte do mesmo grupo há décadas - foi também punida e despromovida, além de ver títulos retirados do seu historial. Antes disso a própria justiça tinha sido vocativa nos castigos aos presidentes de vários clubes acusados de corrupção financeira e maquilhagem de contas que abriu as portas a que instituições como o Parma, Napoles ou Fiorentina entrassem em processos de insolvência.

De certa forma a decisão da justiça italiana de enfrentar-se, uma vez mais, à Juventus, não deveria surpreender e os bianconeri são conscientes de que o passado pode perfeitamente repetir-se e o pesado castigo que a fiscalia pede abrir as portas a uma nova etapa negra na história de um clube que dominou de forma avassaladora o futebol italiano da última década.

Mas se em Itália nada surpreende no que diz respeito a uma decisão de enfrentar-se a um dos gigantes do jogo, o mesmo não se pode dizer no resto da Europa.

Em Espanha, até hoje, o silêncio prima sempre que há um escândalo potencial de corrupção, compra de resultados, maquilhagem nas contas ou interesses políticos, seja no processo de venda dos terrenos do Real Madrid ao municipio na sua antiga cidade desportiva que permitiu a Florentino Perez financiar a sua política dos Galácticos ás recentes “palancas” do FC Barcelona que resgataram o clube da falência certa. Politicamente Espanha permitiu até que quatro clubes fossem isentos de converter-se em SAD´s meramente por questões políticas. No caso alemão a situação é distinta já que o controlo é muito mais apertado do que em qualquer outro país das principais ligas europeias e não há um gigante intocável no sistema mas o mesmo não pode ser naturalmente dito de Portugal, um país onde a justiça anda há décadas atrás dos clubes por distintos motivos, desde o caso Ndinga, o processo do Apito Dourado, o caso dos emails do SL Benfica, o processo Cashball do Sporting, entre tantos outros, sem que nunca se tenham visto consequências legais que penalizassem os corruptores ou os que manobraram o sistema para seu beneficio. Uma decisão mais ligada ao pânico político e social, muito similar ao modelo espanhol - e em ambos casos, em mais de uma ocasião, houve ampliação de clubes nas ligas para tapar potenciais queixas e problemas legais - do que ao italiano onde ninguém está acima da lei tempo suficiente para passar totalmente desapercibido.

Até em França o violento castigo aplicado ao Olympique Marseille no caso Valenciennes, com a despromoção do maior gigante nacional, abriu um precedente que manteve os clubes atentos nas décadas seguintes, um processo que se reabre agora com o início das investigações contra o próprio PSG e a manipulação de contas que oferece a possibilidade de ser, na prática, um clube estado.

O que nenhum destes países tem, no entanto, é uma liga tão poderosa que o seu próprio sistema regulatório impede a entrada em cena do sistema judicial a uma escala nacional. Nos casos italianos ou franceses o peso das decisões foi sempre tomado pelas instituições judicais nacionais, apesar das investigações terem sido feitas em parceria com as federações ou ligas locais. A Premier League opera de uma forma diferente.

O facto de ser uma instituição quase tão poderosa como a própria UEFA, a Superliga de facto no contexto actual, dá à Premier League um poder muito especial em situações como as que está actualmente a viver o Manchester City. A Premier League nasceu de uma cisão com a Football League, apoiada na altura pela Football Association, e na sua constituição, fomentada enormemente pelo então clube do Big 5 - Arsenal, Tottenham, Liverpool, Everton e Manchester United - assentou-se uma série de normativas que garantiam uma política de auto-regulação sem necessidade de intervenção da federação nacional, da Football League ou das instituições governamentais e judiciais.

Sendo uma entidade com vários membros poderosos, economicamente influentes e perfeitamente auto-sustentável, a Premier sempre conseguiu manter um estatuto de equilibrio de interesses. Foi assim que fechou os olhos à entrada de dinheiro russo com Roman Abramovich, dos petrodolores dos Emirados quando a família real de Abu Dhabi adquiriu o Manchester City ou até a chegada, mais lenta mas igualmente decisiva, dos milhões sauditas a Newcastle. Criticada por funcionar à margem de um sentido colectivo, a Premier nunca teve problemas em abrir as portas aos investidores estrangeiros, sendo conscientes da importância que o dinheiro que traziam dava à prova, mas também porque isso lhe permitia não depender do peso político ou social de um ou dois clubes como acontece em países como Espanha ou Portugal.

Quando a polémica da Superliga estalou e se soube que havia até cinco clubes que tinham sido partes fundamentais da fundação da Premier League involucrados no processo houve uma forte tensão interna provocada pelo peso da maioria da assembleia da total exclusão dos amotinados da prova, o que fez verdadeiramente que os seus donos renegassem do plano de Florentino Perez, muito mais do que as manifestações espontâneas dos seus adeptos nas imediações dos estádios. Sair da Premier League era sair da Superliga real para entrar num projecto ficcionado e esse momento serviu igualmente para reforçar o peso da própria instituição como um elemento central na entidade emocional dos ingleses mas também na estrutura de negócio do jogo. Com as relações com a Football League melhoradas com os anos - eles que foram os grandes perdedores com o aparecimento da Premier - de certa forma a estrutura de poder do futebol inglês estabilizou-se e isso permitiu à instituição sentir-se finalmente confortável o suficiente para limpar a casa.

É nesse contexto que aparecem agora as acusações formais da Premier League contra o Manchester City. Acusações que não são novas. O processo largo que opôs os citizens à UEFA, dentro das irregularidades do falido projecto do Financial Fair Play, já incluíam muitas das acusações que a Premier lança contra os sky blues. E em ambos casos a base é a mesma, os documentos públicados pela publicação alemã Der Spiegel, divulgados pelo hacker português Rui Pinto dentro do polémico Football Leaks que abalou vários sectores do futebol mundial e cujas consequências ainda se estão a sentir em distintos países.

A grande diferença é que, apesar de considerados culpados pelo organismo europeu, o que incluía uma suspensão de dois anos das provas europeias, o City conseguiu que o Tribunal Arbitral Superior, num posterior recurso, mitigasse em grande parte os castigos aplicados, salvando o City de não participar na Champions League e também de um valor de multas muito superior ao que finalmente pagou.

Desta vez o City não se enfrenta à justiça ordinária nem tem qualquer possibilidade de recorrer a elementos externos. A legislação que gere a própria Premier desde a sua origem é clara. Tudo é decidido dentro de casa. Mesmo o processo de apelação a um painel independente é gerido pelos dirigentes da Premier que podem escolher os membros desse mesmo painel. E não há nenhum elemento externo à organização que possa ter voto na matéria.

Além do mais, a investigação da UEFA centrou-se num ciclo de quatro anos, já que consideravam que tudo o que estava para trás na prática tinha prescrito. Como o processo se alargou enormemente no tempo, essa prescrição ampliou-se inclusive a feitos dados como provados. Na legislação da Premier não existe qualquer prescrição possível. Podem-se julgar casos em 2023 que remontem à sua origem em 1992 se for necessário e a penalização ser aplicada com efeitos retroactivos.

Isso significa que sem poder apelar a ajuda externa e sem margem de tempo para livrar-se de castigos, a ter em conta as acusações feitas pela própria Premier League, a situação do City é extremamente delicada. O clube mantém a sua inocência, um discurso já conhecido do seu confronto com a UEFA, mesmo que na altura a justiça o tenha dado como culpado em vários delitos, sobretudo de maquilhagem de contas para contornar o FFP. A grande diferença é que a investigação da Premier vai mais além e fala de pagamentos debaixo da mesa a treinadores, como Roberto Mancini, ou vários jogadores, com Yaya Touré à cabeça, bem como a falsificação de resultados comerciais com dados de compras e vendas de jogadores alterados, patrocinios inexistentes e também assédio recorrente a futebolistas menores de idade para ingressar na sua Academia.

Todas estas acusações, mais de 100 violações do código de conducta da Premier e da legislação do Financial Fair Play da instituição, já são, por separado, são graves o suficiente mas, em conjunto, expõem uma situação em que demonstra, a ser certo, como o clube citizen essencialmente competiu de forma desleal na Premier League desde 2009/10 até agora. Na elementar linguagem de rua, pura e simplesmente, o City fez batota.

Entre os potenciais castigos recolhidos no manual da Premier League - o célebre ponto W.51 - há cenários extremos de parte a parte. Nada exclui que o clube seja inclusive considerado como inocente de todas as acusações, ou sofrer apenas uma reprimenda, apesar desse ser para já um cenário altamente improvável tendo em conta que quem vai julgar o caso é também quem serve de acusador, a própria Premier.

A partir de aí o clube vive entre diferentes cenários. Podem sofrer uma dedução de pontos que lhes custe esta temporada o acesso às provas europeias, ou pelo menos à Champions League - sempre e quando a decisão final chegue antes de Junho, o que tendo em conta a quantidade de informação recolhida e o espaço temporal que cobre faz com que seja quase impossível que suceda - ou até ser despromovido administrativamente.

Esse caso é extremamente raro no passado mas há muitos exemplos de clubes com falhos graves no código de conducta da Football League que sofrem graves penalizações pontuais que, em alguns casos, terminam por provocar a própria despromoção como o Derby County ou o Sheffield Wednesday sabem, para citar os exemplos mais recentes. Essa penalização pode ser aplicada no futuro, ou seja, fazer com que o City arranque a seguinte temporada com pontuação negativa como também já sucedeu no futebol italiano, marcando essa época como uma corrida contra o relógio para alcançar as provas europeias ou até a salvação, dependendo de quantos pontos deduzidos fossem aplicados.

Há também o caso das multas pecuniárias, que já foram aplicadas em várias situações, a mais célebre das quais contra o QPR e o Portsmouth que basicamente significaram a falência dos clubes. Tendo em conta que o City já demonstrou ter um poço sem fundo, seria dificil imaginar até que ponto tinham de ser elevadas essas sanções para realmente danificarem o presente e futuro do clube, pelo que para os Citizens esse seria até o melhor cenário. Haveria igualmente a possibilidade de um embargo na inscrição de jogadores - não de transferências, isso é competência exclusiva da FIFA - durante uma ou duas temporadas, o que significaria que o clube não se poderia renovar no mercado, precisamente no momento em que se encontra em fase de transição geracional. E claro, está também a questão do cenário mais agressivo de todos, o de retirada dos títulos conquistados até agora, já que todos eles tiveram lugar em anos onde a Premier League detectou irregularidades.

A situação não é nova em Itália ou França, como Marseille ou Juventus sabem perfeitamente, mas seria inédita no sistema britânico pelo que é muito difícil antever esse cenário. Mesmo que o City perdesse algum desses títulos, numa especie de mensagem política forte da Premier League, isso não significava que fossem entregues aos segundos classificados, podendo ficar vazios como sucedeu na Serie A. Tendo em conta a importância que em Inglaterra se dá à tradição, é um cenário inverosímil.

Onde o City pode mais vir a sofrer, e o futebol mundial mudar para sempre, passa pela possibilidade de, se considerados culpados, os restantes clubes que perderam título, finais ou acessos à Europa decidam avançar com processos judiciais para solicitar indemnizações tal como a contratação polémica de Carlos Tevez provocou entre o West Ham e o Sheffield United em 2006, chegando a disputa aos tribunais com direito a uma indemnização na altura para os Blades na casa dos 20 milhões de libras, que até então sempre se tinham mantido afastados das polémicas futebolisticas. Se essa porta fosse finalmente aberta, uma das regras sagradas do jogo seria quebrada definitivamente e abrir-se-ia a possibilidade de um efeito em dominó que poderia mudar o futebol para sempre.

O que não o é, de todo, é a demonstração de força da Premier League. Um regime de monopólio interessa a poucos - e dentro da exigente competitividade da Premier, o que o City teve até agora foi o mais parecido que o futebol inglês viveu, devido ao seu poderio económico - e a entrada forte do dinheiro norte-americano no Chelsea, a renovação do Arsenal e a ascensão do Newcastle saudita, bem como a presença na elite de clubes históricos como Liverpool, Tottenham ou Manchester United, deixa antever que a Premier se sente forte o suficiente para castigar o City, sabendo que na prática isso tem um impacto extremamente reduzido no que é o seu producto, dando inclusive sinais de ser uma instituição implacável contra aqueles que não cumprem as regras.

É irónico que depois do gasto do Chelsea nos últimos mercados ou da chegada dos sauditas a Newcastle, que seja agora que o City - que fez o mesmo há uma década atrás - se sente no banco de acusados mas o resultado final da investigação pode também de servir de aviso aos outros clubes. E uma vez mais demonstra que a Premier League se sente, em todos os sentidos, uma Superliga com mais força inclusive que a própria UEFA que por muito que quisesse foi incapaz de se enfrentar ao império do City por não ter a totalidade da jurisprudência necessária para ir até ao fim nas sanções que queria ver impostas. Uma decisão que inclusive encontra, ironicamente, apoio noutras ligas como a espanhola, que há vários anos tem denunciado as irregularidades financeiras praticadas pelos clubes estado como o PSG e o próprio City.

A vitória da Premier League seria, em grande parte, uma vitória do futebol contra a cultura de batota imposta pelos clubes estado mas seria também uma vitória de Pirro se servisse apenas para encontrar um clube como cabeça de turco em vez de tentar limpar o sistema da cultura de exploração económica que tem transformado o jogo no clube fechado que é, cada vez, com a elite inglesa lá bem no topo da pirâmide.

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