Mathare United, o clube candidato ao Nobel da Paz
O futebol é mais do que política. É vida. Em África a vida bate a outro ritmo de pulsações. Nesse universo um clube uniu o jogo com a ambição de paz no duro dia a dia do lado mais pobre do Quénia.
No coração de África o futebol ainda é, para muitos, a última esperança. No sentido mais literal possível. Entre guerras, pobreza e uma imigração forçada por ciclos permanentes de perda e dor, o jogo une comunidades e dá um suspiro de esperança aqueles que olham para a bola como o único passaporte possível para um mundo melhor. No Quénia a vida não discorre num ritmo diferente de grande parte do continente, empequenecido nos mapas-mundi desenhado por europeus mas gigante na identidade e capacidade de sobrevivência. Foi nesse cenário que nasceu o projecto Mathare Youth Sports Association que, nas últimas décadas, se transformou no farol de salvação para muitos jovens quenianos. Um projecto piramidal que mantém a comunidade unida e que desemboca no seu clube profissional, o Mathare United, de tal forma um símbolo de uma forma diferente de viver o jogo que esteve perto de se transformar no primeiro clube de futebol a vencer o Nobel da Paz.
Tudo começou enquanto Maradona estava a rasgar o orgulho dos ingleses debaixo de um calor abrasador no estádio Azteca. Bob Munro aterrou no verão do Pelusa de 1986 em Nairobi. O que viu deixou-o devastado.
A capital do Quénia era uma sucessão de dramas humanos, de miséria, lixo, abandono e desespero. A esperança média de vida era mínima. A esperança, por si só, em sobreviver, quase nula. Mais de 700 pessoas morriam ao dia nessa favela que era Mathare, particularmente por culpa da ainda quase desconhecida SIDA. Num universo de mais de 600 mil pessoas, num dos bairros mais pobres do Mundo, viver era um termo dúbio. No meio desse caos humano, Munro descobriu que havia algo que ainda roubava um sorriso aos pequenos desnutridos, doentes, abandonados ou, simplesmente, vitimas de uma tragédia humana única. As bolas de futebol, de farrapos quase todas, voavam entre pernas pelas lixeiras que faziam de ruas até campos onde as toneladas de produtos tóxicos e restos se amontoavam como se fossem bancadas artificiais. O futebol era a única forma de esquecer o drama do dia a dia. Munro, canadiano, e portanto sem uma conexão emocional tão forte com o jogo como seria de esperar, percebeu imediatamente que esse era o único caminho possível para fazer algo diferente na comunidade e colocou mãos à obra. A obra de uma vida.
Dezasseis anos depois recebeu uma noticia inesperada. A sua ideia, já convertida em projecto, tinha atingido a maioridade. Uma carta, selada, imponente, trazia a novidade. O Mathare Youth Sports Association tinha acabado de ser pré-nomeado ao Prémio Nobel da Paz. Estávamos em 2003. Entre os nomeados contavam-se personagens tão emblemáticas como João Paulo II e Bono, vocalista dos U2. Um pequeno clube do Quénia, nascido para combater o drama infantil e a pobreza, tinha marcado o seu golo mais importante. Quatro anos mais tarde, o MYSA repetiu a nomeação. Voltou a não vencer mas o reconhecimento internacional à ideia era definitivamente o mais importante. Os prémios e louvores chegaram de outro lado. Galardoados pelo reino holandês, Munro e os seus conseguiram vários subsídios de apoio da Federação Holandesa de futebol e de vários países e associações escandinavas. Criaram-se protocolos de cooperação e vários dos pequenos aspirantes do Mathare tiveram a oportunidade de provar sorte em algumas das ligas profissionais europeias que só conheciam à distância de um sonho.
O nascimento do Mathare Youth Sports Association foi um raio de luz para o futebol africano. Munro começou o projecto do nada. Organizou em 1987 um torneio entre as varias equipas de adolescentes de Nairobi para determinar aqueles que tinham capacidade para entrar na associação. Os melhores jogadores e os mais organizados projectos colectivos, dos distintos bairros, foram premiados com um cartão de associado. Era a diferença entre viver na mais absoluta miséria e poder sonhar com algo mais.
Com o apoio das Nações Unidas, conseguido depois de vários anos de missivas e pedidos de ajuda, Munro conseguiu construir ao longo vários campos desportivos no meio dos bairros de lata que compunham Mathare com as mínimas condições para a prática do futebol. O jogo era o epicentro para tudo o resto. À volta foram nascendo pequenas escolas, bibliotecas e centros de dia onde os jovens encontravam um espaço para prosseguir os seus estudos ou – caso não tenham capacidade para entrar numa escola pública – para terem lições com professores privados suportados pela associação de forma a prepará-los para o mercado de trabalho. O MYSA também assumiu a responsabilidade, em muitos casos, por resolver os problemas médicos e de desnutrição dos seus jogadores e, em alguns momentos pontuais, dos seus núcleos familiares. As crianças colaboravam também, ao melhor espirito comunitário, ajudando a manter o bairro limpo, respeitando o sistema educativo imposto pelo grupo e também a trazer mais crianças para a asa protectora da associação através das suas pequenas equipas de bairro que continuavam a existir.
Em 1992, Munro quebrou também um dos maiores tabus do futebol africano e abriu as portas do projecto a raparigas, lançando duas equipas oficiais em cada escalão etário numa altura em que o futebol feminino ainda era visto como tabu na maioria dos países desenvolvidos. A aposta deu os seus furtos e com o passar dos anos elas converteram-se na maioria dentro de um grupo de mais de 20 mil crianças associadas ao projecto. Á medida que os adolescentes que tinham começado o projecto chegaram à idade adulta, Munro aceitou a inevitabilidade de criar uma equipa de futebol sénior para dar continuidade à sua evolução e foi assim que nasceu o Mathare United FC.
A nível profissional o Mathare United tornou-se rapidamente num caso de sucesso. Começou a escalar divisões no futebol queniano até estabelecer-se comodamente na primeira. Terminou durante cinco anos seguidos nos quatro primeiros lugares e em 1998 venceram a taça do país pela primeira vez, convertendo-se rapidamente numa das mais reconhecidas escolas de formação do futebol africano. O projecto passou a ser respeitado pela comunidade futebolística que, até então, o via apenas como uma organização social sem grandes ambições competitivas. Desde esse momento até à actualidade, o Mathare United já forneceu mais de cinquenta jogadores à selecção do Quénia. Alguns, como Jamal Mohamed ou Dennis Oliech, cumpriram o sonho de todo o jovem das favelas de Nairobi e assinaram contratos com equipas europeias graças aos protocolos de cooperação potenciados pelas nomeações ao prémio Nobel. Nas camadas jovens do futebol queniano a presença de jogadores formados nas escolas da MYSA é absoluta. Eles são o futuro do país.
Em 2008 a equipa cumpriu um sonho quase impossível quando Munro, duas décadas antes, decidiu por mãos à obra. A vitória no campeonato de liga do Quénia – depois de varias tentativas fracassadas – foi o culminar do sucesso desportivo do Mathare United. Como sempre, o dinheiro atribuído ao campeão bem como os contratos publicitários gerados por um emblema que hoje está entre os mais populares de África, foram para o projecto MYSA.
Por sua vez, a equipa direciona os rendimentos para combater velhos e novos flagelos que assolam a comunidade, desde a preocupante prostituição infantil, às velhas conhecidas desnutrição e abandono escolar. A cada golo que os jogadores profissionais adultos marcam, um pequeno queniano é recompensado com a possibilidade de poder lutar por uma vida diferente. O facto de todos os jogadores do Mathare United terem começado a sua carreira nas escolas da MYSA – o clube não contrata jogadores adultos de outros clubes por política – permite manter esse sinal de identidade com a comunidade local e serve de inspiração para os mais novos. Os jogadores da primeira equipa são obrigados, por contrato, a realizar 20 horas de trabalho semanas na comunidade, a receberem e darem cursos sobre temas tão importantes como a luta contra a SIDA e participarem em todo o tipo de programas sociais que se desenvolvam na capital para combater a exclusão social infantil.
O prémio Nobel pode ter sido um sonho demasiado alto, dignidade reservada a personalidades de maior reconhecimento mediático mas o trabalho desenvolvido pelo Mathare United nas últimas décadas no Quénia é a prova viva de que o futebol ainda é, em África, a pequena balsa a que os desesperados se agarram para sonhar com uma vida melhor longe do caos e do drama do quotidiano.