Marighella, o resistente que foi morto antes do golo 1000
Foi o Inimigo Público Nº 1 da ditadura brasileira. Acabou abatido a tiros depois de agitar a sociedade brasileira nos duros anos da ditadura e a sua vida esteve sempre ligada à sua paixão pelo futebol
A 4 de Novembro de 1969 o Brasil vivia suspenso entre dois dramas que se desenrolavam em São Paulo. No Paceambu, o Santos de Pelé visitava o Corinthians para recuperar uma jornada em atraso por culpa de um diluvio que arrasou a cidade paulistana - a 13ª - do Robertão, o torneio Roberto Gomes Pedrosa que servia, de certa forma, para apurar o campeão nacional.
Edson Arantes de Nascimento estava há meses envolto na saga do golo 1000. Diferentes contagens iam recuperando o espólio goleador do génio brasileiro e apesar de existirem duas versões contemporâneas, todos sabiam que esse golo ia chegar previsivelmente nessa Primavera no hemisfério sul. Faltava conhecer qual seria a vitima que entraria para a história. A cada jogo as multidões enchiam os estádios por onde os santistas passavam só para poder ser testemunhas de um momento que, sabiam, iria ficar para toda a eternidade. O Corinthians era, afinal de contas, um rival histórico do Santos e também uma das suas vitimas predilectas. Nenhum dos dois era favorito ao título - o outro clube paulista, o Palmeiras, levava a dianteira - mas isso pouco parecia importar. Estavam mais de 60 mil pessoas no estádio e as portas abriram às 15h00, cinco antes do arranque do encontro. Houve feridos entre os agentes e alguns adeptos e imaginava-se uma possível tragédia com a sobrelotação que finalmente acabou por não suceder. A cidade estava paralisada, apesar de ser uma terça-feira laboral, e a uns poucos quilómetros de distância cozinhava-se o acto final de outro dos dramas do momento no Brasil, a captura do inimigo público número 1 da Ditadura: Carlos Marighella.
Marighella era deputado federal, comunista e um apaixonado pelo Vitória da Bahia. Depois de 1964 passou a ser, para o imaginário da sociedade brasileira, o maior terrorista do país.
Nascido em Salvador da Bahia a 5 de Dezembro de 1911, filho de um emigrante italiano e uma descendente de escravos sudaneses, era o exemplo perfeito da miscenização da sociedade brasileira que ganhou uma nova pujança a partir dos anos trinta com a presidência de Getúlio Vargas.
Os pais eram humildes - ele, Augusto, um operário que chegou do sul de Itália a São Paulo a acompanhar a família e que acabou na Bahia à procura de trabalho, ela uma doméstica, filha de uma primeira geração de escravos libertos - e Carlos foi um de sete filhos que nasceram durante a década de 10 num país que estava perto de cumprir o centenário de existência sem ter ainda uma identidade clara própria. O pequeno foi escolarizado desde cedo, uma excepção numa sociedade ainda profundamente analfabeta, e completou os estudos secundários antes de começar a trabalhar como engenheiro.
Foi nesse meio que começou a envolver-se com vários elementos sindicais ligados ao Partido Comunista Brasileiro, ao qual se afilia. Entrou rapidamente no circuito habitual das detenções e torturas por motivos políticos ao longo da década de trinta, quando já vivia no Rio de Janeiro. Atrás tinha ficado a Bahia e o seu amor incondicional pelo Vitória. Era presença habitual nas bancadas de madeira do modesto estádio do clube baiano que tinha sido fundado em 1899 e era o grande representante da cidade no efervescente mundo do futebol brasileiro dos anos vinte e trinta. O “Leão da Barra” herdara as cores do Flamengo, clube com o qual Marighella teria também uma relação emocional forte durante a sua etapa na cidade carioca e foi nesses anos que se consolidou como grande referência do futebol baiano, ainda que a anos luz do que sucedia mais a sul. Para Marighella, cuja infância tinha sido passada, como a de todos os “moleques”, em peladas de rua, o futebol continuou a ser parte importante da sua vida adulta.
A finais de 1939, já em pleno Estado Novo brasileiro - um período ditatorial imposto por Vargas depois de uma revisão constitucional saída do golpe militar de 1937, Marighella foi uma vez mais detido por comportamentos subversivos, uma das acusações habituais aos membros do Partido Comunista. Em lugar de ser liberto depois de semanas de tortura, como era habitual, foi finalmente enviado para a ilha de Fernando de Noronha, onde o regime tinha estabelecido uma prisão política para vários opositores sonantes do regime. Uma vez lá, a sua paixão pelo jogo levou-o a fundar o Grémio Atlético do Brasil, uma espécie de clube para os presidiários poderem disputar encontros contra as forças policiais que custodiavam a ilha e alguns autóctones. Com o seu tamanho, um 1m79 alto para os padrões da época no Brasil, Carlos afirmou-se como um defesa central temível, duro de marcação e dono de um pontapé canhão que lhe valeu a alcunha de Bicão Siderurigico.
Foram cinco anos passados no centro de detenção. Em 1945, as pressões dos Aliados, vencedores da II Guerra Mundial, levaram á libertação dos presos políticos e colocaram o governo de Vargas ás portas do fim. Em 1946 foi aprovada uma nova constituição política e com ela Marighella foi eleito como deputado federal, assumindo o seu lugar no congresso que ainda se reunia no Rio de Janeiro, a capital oficial do país.
Durante a campanha eleitoral na Bahia, pela qual era candidato, defendeu a importância da construção de um estádio de futebol digno para a cidade e deu várias palestras em fábricas e associações falando da importância do jogo como elemento de união das massas desde a bancada e do espirito de grupo comunitário dos onze jogadores em campo. Muitos dos seus discursos utilizavam metáforas futebolisticas para chegar aos votantes mais humildes. A promessa foi finalmente cumprida e foi aí que nasceu o projecto da arena Fonte Nova que ainda hoje, recuperada, é um símbolo do futebol baiano. Quando um novo golpe o levou de novo à clandestinidade, enquanto organizava greves e manifestações contra o regime, Marighella conheceu um jovem João Saldanha que rapidamente se tornou num dos seus melhores amigos, tendo servido muitas vezes de correio entre elementos clandestinos do partido comunista ao qual o então jornalista e futuro treinador e seleccionador nacional também pertencia.
Em 1958, já com Juscelino Kubitschek como presidente, Marighella pôde finalmente abandonar a clandestinidade e recuperar a sua posição de deputado federal. Foi já às claras que o politico celebrou a vitória Mundial do Brasil - ele que tinha vivido o Mundial de 1950 como clandestino - chegando a publicar uma ode pública a Mané Garrincha. Esse foi também o torneio que consagrou um jovem Pelé e as suas vidas acabariam por cruzar-se em várias ocasiões nos anos seguintes. Mas enquanto o astro do Santos sempre manteve uma figura pública de low profile, uma das maiores criticas que recebeu ao largo da sua vida pública, muitos outros jogadores brasileiros eram verdadeiros militantes. Saldanha, que era técnico de Garrincha no Botafogo nesse período, conseguiu levar Mané Garrincha a vários comícios do partido enquanto que Didi foi cronista habitual na publicação Hoje, coordenada por Marighella, de cariz comunista. Tudo isso acabou em 1964.
O Golpe militar do exército brasileiro, apoiado pelos Estados Unidos como parte da sua política de controlo da América do Sul, colocou um ponto final a qualquer esperança de democracia na sociedade civil. Muitos comunistas foram detidos, torturados e executados. Outros conseguiram escapar para o estrangeiro. Marighella decidiu ficar e lutar. Poucas semanas depois do Golpe foi alvejado a tiro num cinema pela polícia politica do regime e detido. Só a intervenção internacional logrou a sua libertação mas, quando todos pensavam que ele escolheria o exilio, o militante decidiu abandonar o Partido Comunista - que optara por voltar silenciosamente à clandestinidade - e fundar a Ação Libertadora Nacional, um movimento de guerrilha e resistência inspirada no movimento cubano e vietnamita que incluía militantes de extrema esquerda das mais distintas proveniências.
Durante dois anos a ALN assaltou bancos, comboios, armazéns militares e raptou inclusive o embaixador norte-americano no país, o que levou o regime militar a declará-lo publicamente como Inimigo Público Número 1. Foi capa da revista Veja e os cartazes com “Procura-se” e a sua cara foram espalhados um pouco por todo o Brasil. Pouco a pouco a falta de meios e de apoios foi esvaziando a ANL de impacto. A censura controlava toda a comunicação do país e transformava cada uma das suas iniciativas de cariz político em actos de puro terrorismo, orientando a opinião pública contra o grupo armado. Marighella foi perdendo aliados e vendo como vários elementos da sua brigada eram abatidos ou detidos. Joaquim Camara Ferreira, o seu fiel braço direito, chegou mesmo a recusar a entrada no movimento de um jovem aspirante jornalista chamado a ser uma das grandes mentes do jornalismo desportivo no Brasil nas décadas seguintes, Juca Kfouri. Provavelmente era já consciente que o movimento estava destinado a terminar da pior forma.
Ao mesmo tempo que Pelé ia acumulando golos a ponto de chegar perto dos 1000, o cerco da polícia política liderada por Sergio Fleury apertava-se á figura de Marighella. Aproveitando a confusão provocada pelo jogo no Paceambu, Fleury entendeu que o momento perfeito para encenar uma emboscada ao resistente comunista era, precisamente, durante o jogo que captava todas as atenções do país. Através de várias detenções e torturas, o regime conseguiu atrair Marighella a um encontro com um grupo de missionários dominicanos com os que habitualmente trabalhava, quando este se preparava para organizar a saída de vários elementos da ANL para a fronteira com a Bolívia através da sua rede de contactos.
Quando Marighella chegou ao ponto de encontro, sem saber o que o esperava, o Corinthians já vencia no Paceambu e anulava qualquer tentativa de Pelé de aproximar-se do seu desejado golo mil. Cercado pelos militares da DOPS, o líder da ANL não teve tempo de reagir. Foi abatido a tiro sem piedade apesar de não ir sequer armado. Mais tarde as autoridades políticas tentaram vender a narrativa de que tinha sido ele o primeiro a disparar mas os fotógrafos de serviço no estádio que chegaram ao lugar do evento quando foram alertados pela novidade, ao intervalo do jogo, encontraram um cenário bem diferente.
A noticia foi imediatamente transmitida a nível nacional e no Paceambu foi o locutor do estádio o encarregado de notificar os adeptos das duas equipas. Ambas aplaudiram em uníssono, apesar de que Marighella sempre tinha demonstrado carinho pelo Corinthians, que jogava em casa. Tinha sido deixado só, até mesmo por aqueles adeptos que considerava como irmãos.
Pelé não marcou essa noite de 4 de Novembro o seu ansiado golo mil que chegou onze dias depois, no Rio de Janeiro, num jogo contra o Vasco da Gama, de penalti. João Saldanha, o fiel amigo de Marighella, foi meses depois destituído de seleccionador. A justificação oficial era a má relação com Edson Arantes do Nascimento, a realidade estava no seu passado como comunista e a negativa de convocar Dadá Maravilha, a estrela do Atlético Mineiro, o clube do qual o presidente recém-empossado pela Junta Militar, Emilio Medici, era adepto fanático. O Vitória da Bahia venceu nesse Novembro o seu bicampeonato estadual mas ninguém se atreveu a recordar um dos seus mais ilustres adeptos, um nome que se tinha tornado pária para todos aqueles que o tinham conhecido.
Carlos Marighella foi assassinado pela ditadura fascista brasileira e a sua memória escondida debaixo do tapete até que a democracia permitiu começar a recordar muitos dos seus heróis caídos. Foi finalmente amnistiado em 2012 depois do Estado ter reconhecido, anos antes, a sua total responsabilidade no seu assassinato e o direito à sua viuva, a também militante comunista Clara Chaf, direito a uma pensão de viuvez e indemnização pelos danos provocados. Caetano Veloso imortalizou a sua história no álbum Abraçaço com a canção “Um Comunista”. Na Bahia, a claque do Vitória, decidiu recuperar o seu nome e assim nasceu a Brigada Marighella, um grupo de apoiantes do clube com fortes ligações à esquerda política, que tem, com os anos, transformado a sua devoção pelos rubronegros numa plataforma de luta por várias causas sociais.
Em 2019 o cineasta Wagner Moura transformou a etapa final da sua vida num filme que assombrou o mundo e recebeu elogios no circuito de festivais internacionais, especialmente graças à sublime interpretação de Seu Jorge como o activista. O futebol é figura omissa durante a obra até ao plano final, em que os elementos da ANL cantam o hino nacional num arrebato que recordava o dos próprios jogadores canarinhos antes da final de um Mundial.
Num país mais perto do que nunca da mesma realidade vivida na pele, com as marcas bem vincadas, por Marighella, a sua história faz mais sentido ainda e a a sua paixão imensa pelo futebol permite a todos recordar que o jogo e a política estão intimamente ligados, especialmente num país onde o futebol equivale ao ar que se respira.
A forma como o seu nome ecoa ainda nos jogos do Arena Fonte Nova, que ajudou a idealizar, e como a sua cara está por detrás da resistência social do movimento ultra baiano, ajudam a entender o verdadeiro impacto da herança da sua vida. Mas nem tudo teve final feliz. Afinal de contas, Pelé marcou o golo mil mas Carlos Marighella não viu. Esse é talvez o lado mais triste de toda esta história.