Kubala, quando Franco decidiu salvar o Barcelona
Era o melhor jogador do mundo no início dos anos 50 mas a sua condição de apátrida não lhe permitia jogar até que o governo de Franco permitiu inesperadamente que assinasse pelo Barcelona.
Quando em 1954 Alfredo di Stefano aterra em Madrid e segue caminho com a sua família para Barcelona, os rumores indicavam que o acordo com o argentino já estava fechado e que a equipa da cidade Condal iria alinhar aqueles que eram, provavelmente, os dois maiores futebolistas do mundo, algo nunca visto até então no futebol.
Di Stefano era considerado como uma das grandes estrelas do futebol sul-americano mas na Europa o rei, à época, era Ladislao Kubala. No final, o argentino acabou por se ver envolvido numa telenovela lendária que, resumida, finalizou com este a assinar pelo Real Madrid depois do Barcelona ter recusado a proposta mediadora do General Moscardó, o homem forte no desporto do regime franquista. Kubala, de quem muitos suspeitavam que estava acabado já à época, como consequência do seu estilo de vida, continuou a ser a estrela cintilante dos blaugrana durante quase uma década. No entanto o êxito europeu do Real Madrid levou os catalães a ajudar a propagar o falso mito de que o argentino não tinha ficado em Barcelona exclusivamente por culpa do regime franquista e da sua vontade de beneficiar um clube da capital em detrimento de uma entidade catalã. Um argumento repleto de buracos como os próprios adeptos do Barcelona sabiam, especialmente tendo em conta a importância que esse mesmo regime teve num dos momentos mais decisivos na história do clube.
A história oficial do Barcelona, particularmente desde o apogeu mediático revisionista da causa independentista catalã, sempre preferiu focar a sua atenção nesse episódio, que serviu para criar uma cultura de vitimismo que perdurou até á segunda chegada de Cruyff, um pragmático emocional com pouco tempo para novelas de algibeira. O que se deixou comodamente para trás foi o relato de como Kubala, uma das primeiras genuinas super-estrelas do futebol europeu, conseguiu jogar com a camisola blaugrana quando meia Europa queria vê-lo detido e inabilitado e a outra metade olhava para o lado de forma cumplice. Só o regime franquista, na sua ânsia de dar um golpe ao comunismo, se posicionou a seu favor. Graças a Franco, Kubala levou o Barcelona a ser o maior clube do mundo.
Ladislao - nascido Laszlo - Kubala era um jogador especial. Dominava a bola como ninguém, tinha uma potência de aceleração única, jogava com os dois pés e ao contrário do que era habitual à época, movia-se por toda a largura do campo sem prender-se a nenhuma posição em particular. Não era avançado, não era extremo e não era médio. Foi um dos primeiros jogadores totais em toda a sua essência. Os ensinamentos da escola danubiana, que bebeu como poucos durante a sua infância e adolescência na década de trinta, transpareciam a cada controlo, recepção e passe. Era o futebolista perfeito da escola de Jimmy Hogan, que tinha aterrado nos anos vinte em Budapeste para orientar o MTK deixando um legado que perdurou no tempo.
Com dezassete anos começou a jogar profissionalmente. Viviam-se os primeiros passos do pós-II Guerra Mundial e para o futebol húngaro, finalista vencido na final do Mundial de 1938, o jovem jogador era a maior esperança para restabelecer o seu papel histórico no futebol continental. Nos quatro anos seguintes, o génio de Kubala ficou confirmado, primeiro com a camisola do Ferencvaros e depois com o Slovan Bratislava, clube checoslovaco, cidade da qual era originária a sua família paterna. Nesses anos o futebolista compartia o protagonismo à escala mundial com o italiano Valentino Mazolla, o inglês Stanley Matthews, o argentino Adolfo Pedernera e o brasileiro Heleno de Freitas. Eram la creme de la creme do beautiful game.
No entanto, tudo mudou precipitadamente. Kubala e a sua família eram conservadores, profundamente católicos e abominavam o comunismo. Á medida que as manobras politicas dos principios da Guerra Fria iam apertando o cerco aos países libertados pelo exército soviético, tornava-se evidente que os partidos comunistas, a principio minoritários, iam tomando conta do poder. Essa não era a vida que Kubala queria para si.
A 25 Janeiro de 1949 o governo húngaro ficou definitivamente entregue ás mãos do partido comunista local. Kubala – já casado com Ana Daucik, filha do antigo jogador checo e então treinador Fernando Daucik, que mais tarde passaria até por Portugal – conseguiu escapar até á fronteira italiana escondido num camião através da zona militarizada austriaca, com outros refugiados políticos.
Em Itália jogou primeiro com o Pro Patria ao mesmo tempo que reunia à sua volta uma comunidade de expatriados políticos, entre hungaros, checos, russos e jugoslavos, todos eles a tentar escapar do regime comunista imposto nos meses anteriores nos distintos países da recém-formada “cortina de ferro”. Aí fundaram um clube para disputar jogos amigáveis que lhes permitiria sobreviver até encontrar uma solução, o Hungaria FC. Encontraram rapidamente boa acolhida em Itália e disputaram uma série de jogos com os principais clubes locais mas os seus certificados internacionais permaneciam retidos nas federações húngara e checoslovaca, o que os impedia de assinar oficialmente por qualquer clube. Essa pressão política invalidou a proposta milionário do Torino a Kubala. Meses depois a equipa perderia a vida no acidente de Superga e a vida do jogador esteve mesmo em risco. Ao ser um jogo amigável, aquele que o clube turinês disputaria em Lisboa - a cerimónia de despedida de Francisco Ferreira, histórico capitão do SL Benfica - Kubala esteve a ponto de embarcar no avião como jogador convidado mas uma constipação acabou por salvar-lhe a vida.
No final de 1949 a pressão do partido comunista italiano, uma das maiores forças do país, fechou as portas do Hungaria no Calcio e este foi forçado a viajar, passando por França, pela América do Sul acabando por chegar finalmente a Espanha. Seria o momento decisivo na história do futebol europeu.
A fama de Kubala precedia-o mas muitos duvidavam da sua condição depois de mais de um ano sem disputar nenhum jogo competitivo. O Hungaria passeou-se por Espanha medindo-se contra o Barcelona, Espanyol e Real Madrid e foi aí que o húngaro deixou claro que mantinha todos os dotes que o tinham celebrizado nos anos anteriores. Nas bancadas de Les Cortes, o pequeno campo do Barcelona, a antiga estrela internacional Pep Samitier percebeu de imediato que Kubala poderia ser fundamental para restabelecer a hegemonia do Barcelona que nos anos do pós-guerra tinha perdido vários jogadores, a maioria emigrados após uma tour no México, e que via como o Athletic Bilbao e, sobretudo, o Atlético Madrid, agora conhecido como Aviacion pelo apoio dado pela força áerea franquista à entidade do Manzanares, assumiam o protagonismo no futebol espanhol. Curiosamente um cenário onde o Real Madrid – uma década depois da Guerra Civil ter terminado – era ainda um actor muito secundário, tendo vencido o seu último titulo nacional em 1932, em plena República.
Samitier abordou Kubala sobre a possibilidade de assinar pelo “Barça”. O húngaro, necessitado de dinheiro e desesperado com a situação, aceitou de imediato mas com uma condição. Com ele tinha de vir também Daucik, o seu sogro, como treinador. O dirigente barcelonês torceu o nariz à imposição mas disse ao jogador que era algo a negociar mais à frente. Entretanto começou a utilizar os seus contactos na Federação. Samitier era catalão mas tinha jogado no Real Madrid, era internacional por Espanha e estava de boas relações com as cabeças do regime franquista.
Ao mesmo tempo que este iniciava gestões para desbloquear a situação, Santiago Bernabeu fez uma proposta similar a Kubala. Sem saber como as negociações com o Barcelona iam ser concluidas, Kubala decidiu jogar a duas bandas e aceitou a proposta de Bernabeu, que lhe apresentou então um pre-acordo. Nunca o recebeu assinado. Samitier soube da abordagem e estrategicamente levou Kubala a jantar na véspera do encontro que este tinha agendado em Madrid com o presidente do Real. Kubala tinha uma grande debilidade, o alcoolismo. Samitier percorreu com ele os bares do centro de Madrid até Kubala acabar literalmente inconsciente. Quando acordou ia num comboio a caminho de Barcelona em companhia do dirigente culé. Horas depois, nesse 15 de Junho de 1950, Kubala chegou ás instalações do clube, ainda de ressaca, e apresentou um exemplar do pre-acordo com Bernabeu afirmando que apenas assinava com o Barça se o acordo fosse melhor e Daucik contratado como treinador (algo que Bernabeu tinha recusado, mas que o Barcelona desconhecia). Minutos depois transformava-se no jogador mais bem pago do mundo. Agora faltava apenas superar os trâmites legais. E aí entrou em jogo o generalissimo Francisco Franco.
A influência politica da federação hungara era tremenda no virar da metade do século e meses depois da deserção de Kubala, a FIFA aceitou impor um ano de sanção sem competir ao jogador.
Os húngaros queriam que este fosse banido para toda a vida e estiveram a ponto de o conseguir. Samitier sabia disso e contactou Muñoz Calero, então presidente da Federação espanhola e um franquista reconhecido. Era do melhor interesse do regime, disse-lhe, que na luta contra o comunismo a política exterior espanhola transfomasse Kubala num exemplo daqueles que querem abandonar um regime comunista pela “liberdade” do regime espanhol. O argumento foi recebido por Franco e pelos ministros com agrado. Kubala ia ser uma arma mais na Guerra Fria.
O Real Madrid protestou pela atitude do Barcelona de forma oficial na federação mas foi aconselhado por Muñoz Calero a calar-se e aceitar desportivamente a derrota para o bem maior da nação espanhola uma vez que a diplomacia franquista não podia apresentar-se diante da FIFA com um escândalo entre clubes em casa. Apesar de ser o clube da capital, o clube presidido por um combatente na Guerra Civil ao lado do exército franquista, o regime decidiu que era melhor nesta situação apoiar o Barcelona antes que o Real Madrid. Uma tomada de posição clara e evidente que contrasta muito com a mitologia à volta do caso Di Stefano e que levanta definitivamente a sombra de favorecimento ao Real Madrid por parte do Franquismo que só aconteceu a partir do momento em que os merengues começaram a acumular títulos continentais e prestigio, a final da década.
O passo seguinte a dar foi nacionalizar Kubala. O jogador foi baptizado na aldeia de origem do próprio Muñoz Calero entre pompa e circunstância e foi-lhe atribuida a sua terceira nacionalidade – era já hungaro e checo e tinha jogado pelos dois países, seria o único a fazê-lo por três, meses depois, quando se estreou como internacional espanhol – como passo prévio antes da reclamação oficial á FIFA.
Durante meses emissários espanhois e húngaros discutiram em Paris com Jules Rimet a situação de Kubala. Ao mesmo tempo, ainda que oficialmente banido, Kubala começou a jogar pelo Barcelona. O seu entrosamento com os colegas foi imediato e aos 25 anos Kubala voltou a demonstrar porque era o melhor do mundo. Quando o ano de suspensão acabou oficialmente, a finais de 1951, Kubala tinha atrás de si já uma dezena de amigáveis que lhe tinham permitido recuperar a forma revelando-se decisivo para a conquista da Liga e da Copa del Generalissimo de esse ano para o Barcelona. A temporada seguinte foi ainda melhor, um ano histórico em que o clube ganhou ainda meses depois a Copa Latina, a Copa Eva Duarte e a Copa Martini Rossi, tornando-se no primeiro clube da história a vencer cinco troféus num ano natural. Para a história ficou como “El Barça de las Cinc Copes”. Entre 1951 e 1953 o Barcelona venceu todas as ligas e taças disputadas em Espanha, todas elas com o selo de Kubala. A hegemonia era avassaladora.
Paralelamente ao êxito desportivo, o regime franquista triunfou politicamente quando a FIFA decidiu perdoar de forma oficial a Kubala para desespero da federação húngara.
O futebolista ficou eternamente agradecido ao regime e aceitou inclusive participar em vários filmes de propaganda, sendo o mais notável “Los Ases Buscan la Paz”, onde narrava de forma fantasiosa a sua história. Desportivamente Kubala significou um ponto de inflexão no futebol espanhol. A partir da sua chegada Espanha transformou-se um paraíso para as melhores estrelas internacionais que começaram a ver na liga o melhor escaparate possível. O Barcelona viveu também uma idade de ouro com o húngaro de tal forma que as enchentes que provocava no Les Cortes obrigaram o clube a formalizar a construção de um novo estádio. Kubala foi a principal razão por detrás do nascimento do Camp Nou da mesma forma que, pouco depois, Di Stefano iria provocar as sucessivas ampliações do estádio Chamartin.
Kubala permaneceu activo – ainda que os seus problemas com o alcoolismo que lhe chegaram a provocar tuberculose lhe tivessem tido uns anos quase inactivo – até inicios dos anos sessenta, ganhando tudo o que havia para ganhar salvo pela Taça dos Campeões Europeus, um sonho que lhe escapou em Berna contra o Benfica. O êxito desportivo do Real Madrid de Di Stefano – de quem foi grande amigo pessoal e a quem acolheu no Espanyol quando este abandonou o Real Madrid em guerra aberta com Santiago Bernabeu – acabou por ofuscar o seu papel fundamental na história do futebol e a novela á volta do argentino também levou muitos a esquecerem que se houve algum clube abertamente favorecido pelo Franquismo na luta de galos entre Real Madrid e Barça pelas grandes estrelas mundiais, esse foi, a todos os títulos, o clube catalão.