Juventus, a origem do mito bianconeri
As cores da icónica camisola da Juventus não estavam nos planos dos seus fundadores mas ajudaram o clube a tornar-se numa referência icónica quando chegou a sua primeira idade de ouro.
O futebol vive rodeado de histórias curiosas e, muitas vezes, o que hoje damos por certo sucedeu de uma forma bem diferente. No caso da icónica camisola da Juventus, a sua origem que é também a da alcunha do conjunto turinês disto muito do que foi a primeira pele dos jogadores do clube mais bem sucedido do futebol transalpino.
Em 1903 a Juventus era já uma das formações mais respeitadas de Itália. A terceira mais antiga - depois de Genoa e Udinese - a “Vecchia Signora” por essa época o clube não tinha ainda um touro como símbolo. Nem equipava de branco e negro. Longe disso.
O primeiro equipamento da Juventus era cor de rosa, uma cor que foi recuperado nas últimas duas décadas mas que durante quase oitenta anos desapareceu por completo da iconografia do clube. Os seus fundadores tinham escolhido o nome de Juventus porque, na realidade, não passavam de um grupo de jovens estudantes adolescentes de boas famílias burguesas italianas e também inglesas que residiam na cidade de Turim. Para respeitar a filosofia do projecto escolheram o rosa como cor do equipamento. Uma cor ligeira e divertida, como deveria ser a equipa em campo.
Fundada três anos antes do final do século XIX, a Juve inscreveu-se na recém-criada federação italiana em 1900 como fundadora e começou por disputar os campeonatos regionais do Piemonte, rapidamente passando para o campeonato nacional. Por essa época exibia um equipamento com calções negros e camisola cor de rosa. Só em 1903 a história se reescreveu e começou a formar-se a lenda bianconera.
Com a equipa a lutar pelo titulo nacional italiano - num torneio que excluía qualquer equipa a sul de Florença - ainda assim a Juventus vivia uma complicada. As discussões entre os fundadores eram constantes e Alfred Dick, responsável número um pela criação do clube, acabou por abandonar o projecto com vários dos seus colegas. Juntos formaram o Foot-Ball Club Torino que rapidamente se iria tornar no grande rival da Juventus e a entidade mais popular da cidade. Com ele partiram vários jogadores e do cor-de-rosa original da sua Juventus o seu Torino passou a utilizar um grená que faria história no Calcio nas décadas seguintes.
Entretanto os jogadores da Juventus que tinham permanecido fieis à ideia original, sentiam que ainda estavam procura da sua identidade, e um dos primeiros passos dados foi trocar de equipamento. Foi fundamental a influência de John Savage, um industrial inglês que residia na cidade e que habitualmente acompanhava os jogos da Juventus para dar esse decisivo passo.
Ao ver que o equipamento original começava a perder cor devido às constantes lavagens, Savage decidiu encomendar de Inglaterra um novo set de camisolas para oferecer aos amigos. Para tal desenhou um equipamento dividido a meio entre o negro e o cor de rosa e entrou em contacto com um colega de Nottingham, solicitando-lhe que este lhe enviasse vários exemplares deste novo modelo. Só que a cópia remitida perdeu cor e ao ver um equipamento negro e esbranquiçado, este decidiu enviar, em contrapartida, réplicas do equipamento do seu próprio clube, o histórico Notts County, o primeiro clube a ser fundado na história do futebol.
Quando a mercadoria chegou a Turim, Savage viu-se surpreendido e pediu de imediato desculpas aos colegas, indicando que voltaria a contactar o seu contacto em Nottingham para enviar o modelo desenhado e aprovado por todos. O certo é que já era tarde. Estes já se tinham apaixonado pelo novo equipamento e adoptaram-no de imediato, sentindo que a sua senioridade na cidade seria reforçada se usassem as cores do clube mais antigo da nação que tinha levado o futebol ao mundo. Além disso, as riscas pretas e brancas verticais davam, segundo eles, uma aura da mesma força implacável que acabaria por se tornar na imagem de marca do clube.
A partir de 1903 a Juventus nunca mais voltou a abandonar as cores adoptadas. Os adeptos por toda a Itália começaram a utilizar a alcunha de “bianconeros” e ao criar o seu primeiro emblema mantiveram as cores como fundo do escudo de Turim onde pontificava já o mítico touro negro (que nos anos 80 e 90 foi substituído temporalmente por uma zebra na política de marketing potenciada pela Serie A). Com a aquisição do clube por parte da família Agnelli, nos anos 20, a equipa deixou de importar os equipamentos de Inglaterra e passou a produzir as suas próprias camisolas. Que ainda hoje utiliza e que nos anos trinta se tornaram nas mais populares do país a ponto de inspirar outros clubes a utilizar uma versão similar.
Tal deveu-se a que o período conhecido pela primeira era de ouro do futebol em Itália - potenciado com os dois títulos Mundiais e a medalha de ouro olímpica entre 1934 e 1938 - foi também marcado pela hegemonia da Juventus no terreno de jogo.
Entre 1930 e 1935 os bianconeri venceram o que seria o primeiro Pentacampeonato da história de uma das grandes ligas do futebol europeu. A Serie A como competição nacional existia há quatro anos, uma das grandes decisões nascida da Carta de Viareggio, o documento que Benito Mussolini tinha instado às autoridades do futebol italiano assinar e que revolucionou para sempre o jogo no país. Dentro das várias medidas estava a italianização dos nomes dos clubes, a utilização do Scudetto ao peito do clube campeão e a formação de um torneio nacional de duas divisões que substituía os campeonatos de matriz mais regional em formato a eliminar.
A conquista do Scudetto em 1930 pelos turineses abriu um ciclo histórico de cinco anos em que a “Vechia Signora” - alcunha que herdou a partir precisamente dos triunfos conseguidos nesse período da história do Calcio e que seria atribuída no pós- II Guerra Mundial pelo jornalista Gianni Brera - se transformou em referência nacional. Treinador por Carlo Carcano, os bianconeri passaram de ser terceiros em 1928/29 a bater os vigentes campeões do Internazionale (baptizados de Ambrosiana) liderados por um jovem Giuseppe Meazza, e a grande favorita, a Roma de Amadeo Amadei, o que lhe permitiu conquistar o primeiro titulo na Serie A - depois de ter vencido duas edições, em 1905 e 1926, no anterior formato.
Presididos por Edoardo Agnelli, filho do dono da FIAT, a Juventus beneficiava do importante apoio financeira de uma empresa que crescia a olhos vistos com o apoio inequívoco do regime fascista. Esse poderia económico permitiu-lhe assinar contrato com alguns dos primeiros Oriundi - jogadores de origem italiana, fosse directa ou através de familiares, mas afincados na América do Sul, em especial na Argentina e Uruguai, as duas potências mundiais à época - como Luisito Monti, Raimundo Orsi, Eugenio Castelucci, José Maglio ou Renato Cesarini. A esses sul-americanos nacionalizados de forma express juntava-se a coluna vertebral defensivo do seleccionador Vittorio Pozzo, composta pelo guardião Combi, os defesas Caligaris, Ferrari, Rosetta, Brigatto, os interiores Crota, Mosca, Munerati, Varglian e Bertolini e ainda os extremos Vechinna e Sergnagiotto.
Entre essa pequena constelação de estrelas a Juventus formou um dos conjuntos mais míticos da história do Calcio que bateu o Bologna na seguinte temporada e o Inter-Ambrosiana dois anos mais tarde, superando sucessivamente os seus próprios recordes. O conjunto neruazurri seria o seu único rival a sério nas seguintes duas temporadas que completaram o Pentacampeonato mas os golos decisivos da aquisição Felice Boral, demonstraram ser mais do que suficientes para fechar contas a um ciclo histórico.
Ironicamente, tal como sucederia nas décadas seguintes, a facilidade com que a Juventus triunfava a nível doméstico chocava com a sua incapacidade em transmitir essa hegemonia fora de portas. Da mesma forma que o conjunto bianconeri teve de esperar a 1985 para vencer a Taça dos Campeões Europeus a que somou a sua única Champions League, onze anos depois, também essa histórica geração nunca conseguiu vencer nenhuma das cinco edições da Taça Mitropa que disputou no seguimento dos seus títulos nacionais. Ao contrário de Inter e Bolonha, vencedores da maior competição continental de clubes da primeira metade do século XX, os juventinos ficaram sempre pelo caminho na hora H o que também serviu para alimentar a polémica entre os seus adeptos rivais que acusavam regularmente a formação da FIAT de ter benefícios extra-desportivos em campo quando actuava nas competições nacionais.
O certo é que os anos trinta fizeram da Juventus uma potência continental e nacional, estatuto que nunca mais perdeu, e tal foi conseguido com uma camisola que nunca deveria ter chegado às mãos dos seus jovens fundadores. Do pálido cor-de-rosa original à verticalidade do branco e negro forjou-se também a própria identidade de uma senhora do futebol.