Hernâni, quando o melhor jogador do Porto foi de viagem com o Sporting
Até aos anos sessenta era habitual os jogadores participarem em jogos testimoniais por clubes rivais ou até mesmo ir em tour com outro clube. Mesmo quando a rivalidade era intensa como viveu Hernâni.
Hernâni foi talvez um dos maiores jogadores portugueses da história. Maior símbolo do FC Porto durante largas décadas, a sua carreira fez-se quase exclusivamente no clube da Invicta. No entanto, no Verão de 1953, com a autorização dos azuis-e-brancos, vestiu a camisola do Sporting convertendo-se num dos “Violinos” por umas semanas.
A história do futebol português pode resumir-se com duas dezenas de nomes mágicos. Entre eles está, seguramente, o de Hernâni Silva e ao seu lado, bordado a letras de ouro, o dos componentes do quinteto conhecido como os “Cinco Violinos”. Durante vinte anos foram o santo e senha do futebol em Portugal apesar de militarem em bandos rivais. Mas por umas semanas, estiveram juntos no mesmo barco e deleitaram os espectadores com uma combinação única. A pesar da intensa rivalidade existente entre leões e dragões – talvez a mais forte do futebol em Portugal durante o final dos anos quarenta e inícios da década seguinte – o espírito de outro época permitiu o impossível.
Hernani tinha acabado, no Verão de 1953, de realizar a sua única temporada longe do Porto. A jovem promessa azul-e-branca tinha começado a sua carreira na sua cidade natal, Águeda, onde rapidamente chamou a atenção dos dirigentes dos “Grandes”. O Benfica fez o primeiro âmago – o jovem era benfiquista confesso como toda a sua família – mas foi o FC Porto que levou a melhor. Alberto Augusto, antigo internacional na década de vinte e então treinador do clube, convenceu a mãe do jogador, D. Aurora, que só exigiu que o filho continuasse a viver em casa. Durante largos meses viajou de comboio para os treinos e jogos voltando sempre ao lar. Até que chegou o dia de cumprir o serviço militar obrigatório.
O FC Porto tentou que o futebolista fosse destacado para um quartel na zona norte mas acabou destacado no Regimento de Cavalaria 7 em plena Lisboa. Nessas manobras muitas vezes cozinhadas por decisões políticas nasciam contactos que levavam a transferências inesperadas e o Sporting tentou aproveitar-se da situação para procurar recrutar a grande promessa dos dragões mas este manteve-se fiel ao Porto que acedeu emprestá-lo durante os dois anos que duraria o serviço ao Estoril, clube contra o qual o jogador se estreara com a camisola dos portistas, marcando um golo.
Hernani era já uma das estrelas cintilantes do futebol em Portugal e enquanto o FC Porto inaugurava o estádio das Antas dando inicio a uma nova etapa na sua história, ele fazia as delicias dos adeptos da linha de Estoril com as suas exibições de amarelo ao peito. O seu ano foi excelso e no final da temporada o FC Porto fez valer a influencia política de alguns dos seus dirigentes com o regime salazarista para lograr a transferência de quartel para o Porto de forma a recuperar o jogador para uma linha de ataque que incluía também aquele que viria a ser o seu melhor amigo, José Maria Pedroto.
A vida de Hernani podia ter seguido o seu curso de forma natural mas ainda lhe estava reservado um episódio especial. No Verão de 1953 o Sporting preparava uma digressão pelo Brasil, como era habitual na altura entre os principais clubes portugueses. A equipa leonina era então a máxima referencia do futebol português a nível internacional graças ao génio da sua linha avançada conhecida como os “Cinco Violinos” e a presença na final inaugural da Taça Latina. A tour em terras brasileiras era resultado dessa genuína admiração que existia com o clube do outro lado do Atlântico e também do apelo da comunidade lusa que sempre procurava ajudar a facilitar estas viagens dos clubes portugueses auxiliando na logística e nos prémios de jogo atribuidos pelos clubes locais. Mas a verdade é que os “Violinos” já não eram cinco.
A retirada precoce de Fernando Peyroteo e o facto de Jesus Correia compaginar ao mesmo tempo os relvados com a sua carreira como jogador de hóquei, tinham reduzido a linha a três futebolistas fixos, Albano, Vasques e Travassos. Para cumprir com o cachet e a expectativa dos brasileiros, o Sporting decidiu utilizar a sua influencia doméstica para recompor de forma temporal a sua linha ofensiva. Graças à pressão da federação portuguesa – sempre desejosa de relembrar aos clubes o seu dever patriótico e a importância de manter boas relações com um país como o Brasil – os leões conseguiram o empréstimo temporal de Mário Wilson, antigo jogador seu e por então estrela da Académica – e também de Hernâni. A principio o FC Porto não estava interessado em ceder uma das suas estrelas ao rival, temendo sobretudo uma lesão na digressão estival que pudesse condicionar a preparação da nova temporada. Mas acabou por não ter outro remédio que aceitar uma pressão que vinha de cima.
O jogador, por outro lado, estava desejoso de viver a experiência. Rumo ao Brasil, travou uma amizade que ficaria para a história com Wilson e em terras brasileiras brilhou com a camisola verde e branca e o leão ao peito. Mais até do que o próprio Sporting. Os lisboetas foram derrotados por 2-1 no Paceambu contra o Corinthians e por 4-1 contra São Paulo e no terceiro encontro empataram contra o Olimpico de Assunción. O último jogo saldou-se com nova derrota, frente ao Santos, por 6-3. Hernâni foi o melhor marcador leonino durante a digressão mas o abismo que separava os clubes brasileiros e portugueses nos anos cinquenta era ainda imenso.
Hernani voltou do Brasil como um dos futebolistas com maior cachet no futebol português. Durante a década seguinte converteu-se numa estrela nacional e guiou o FC Porto – que vivia um largo jejum de títulos – à vitória em duas ligas e uma Taça de Portugal, revelando-se fundamental com os seus golos e assistências em ambos casos. Com Dorival Yustrich, treinador com quem acabou por trocar socos no túnel de acesso ao relvado do estádio das Antas, foi campeão em 1956 marcando o golo decisivo, de grande penalidade, num jogo contra a Académica capitaneada por Mário Wilson. Numa tarde em que Ramin, o guarda-redes dos “estudantes” parecia parar tudo, um penalti nos últimos minutos provocou um autêntico ataque de ansiedade nos jogadores do Porto. Em todos salvo no “Furacão de Águeda” que pegou na bola, colocou-a no ponto de máxima penalidade e aguentou estoicamente os insultos do seu amigo Wilson antes de marcar o golo do titulo.
Nos festejos que se seguiram, ambos os futebolistas terminaram abraçados. Anos depois – e após uma temporada em que os azuis e brancos perderam um titulo que parecia conquistado quando Virgílio, jogador chave, foi suspenso “sine die” até que um jogador do Benfica recuperasse de uma lesão que foi estrategicamente prolongando para impedir o rival das “Águias” de alinhar a sua principal figura – Hernâni e o FC Porto voltaram a ser campeões, agora com Bella Guttman no banco. As suas exibições impressionaram o próprio Helenio Herrera que convenceu Angelo Moratti, presidente do Inter, a pagar 1500 contos pelo seu passe. Hernâni recusou a oferta milionária e permaneceu no Porto mais três anos quando a nível internacional a sua celebridade já tinha sido ultrapassada por um jovem adolescente que o tratava em campo sempre por “Sr. Hernani” e se chamava Eusébio da Silva Ferreira.