Geraldo, o fim trágico do sucessor de Pelé
Estava chamado a liderar a geração dos anos setenta do futebol brasileiro, a figura máxima de uma nova constelação de estrelas. Uma cirurgia de rotina acabou por convertê-lo numa lenda.
Era uma das maiores promessas do futebol mundial. Para muitos o mais brilhante futebolista da sua geração. Mais ainda que o seu colega de equipa, um génio chamado Zico. Com 22 anos estava chamado a engolir o Mundo mas uma operação de rotina privou ao mundo da magia precoce de Geraldo Alves, a estrela do Flamengo que é também o tio perdido de Bruno Alves.
26 de Agosto. Geraldo Alves e Serginho, jogador e fisioterapeuta do Flamengo, partem para o Hospital, na Gávea. O médio tinha de realizar uma operação de rotina às amígdalas e o seu fisioterapeuta acompanhava-o quase como desculpa para faltar ao treino. Era preciso seguir o menino prodígio para todo o lado até porque Geraldo tinha medo de ser operado. Tanto medo que tinha faltado à consulta do dia anterior, o mesmo dia em que Serginho levara outro dos seus “mininos”, Artur Antunes, conhecido entre os amigos e colegas de balneário como Zico. Não era a primeira vez. Geraldo fugira duas vezes do hospital e faltara a várias consultas no ano anterior. Era como se já dentro dele pudesse sentir algo. Até que o destino lhe pregou a definitiva rasteira. Ingressado, Geraldo contava as horas para receber a alta que lhe permitia voltar a passear por Copacabana com os seus irmãos e amigos inseparáveis, Pintinho e Zico. Os três dividiam as capas das secções desportivas no Rio.
Eram a grande esperança da renovação daquele Brasil que vivera na Alemanha, no primeiro Mundial pós-Pelé, um choque de realismo. Para muitos o torneio seguinte, na Argentina, seria de novo dos canarinhos se Coutinho, o seleccionador, se limitasse a fazer o que todos esperavam, alinhando lado a lado a Zico, Pintinho, Sócrates e Geraldo. Sobretudo Geraldo.
Com 22 anos poucos futebolistas tinham o seu talento e carácter. Era conhecido pela “torcida rubronegra” como o “Assobiador”, tal era a forma descomplexada com que encarava os momentos de maior tensão. Assobiando. Geraldo queria sair depressa da cama de hospital para sentir a areia e a bola nos pés. Para engolir o Brasil com as suas fintas, os seus remates de folha seca e a sua habitual “ginga”. Nunca o conseguiu. Não voltou a levantar-se da cama. Uma alergia inesperada à anestesia custou a vida à maior promessa do futebol brasileiro numa tarde em que o país parou e chorou. A tarde em que o Brasil perdeu a magia.
Geraldo Alves nasceu em Barão de Cocais no coração humilde de Minas Gerais. Pertencia a uma família numerosa – eram dez os irmãos – e com o futebol nos pés e na alma. O seu irmão mais velho, Washington Alves, fez carreira como um dos centrais mais duros do Flamengo antes de mudar-se para Portugal. Aí nasceram os seus dois filhos. O primeiro teve o nome do tio, uma homenagem póstuma que não serviu para transmitir-lhe esse ADN mágico que Geraldo levava nos pés. O outro saiu ao pai, menos no nome. Central duro, implacável, cresceu para afirmar-se como um dos jogadores mais célebres no eixo da defesa da sua geração, participando em Campeonatos do Mundo, Europa e torneios europeus de excepção. Responde pelo nome de Bruno Alves e apesar de todo o sucesso conquistado, na família Alves sabem que Bruno é apenas um pálido reflexo futebolístico do que foi o tio Geraldo.
Graças à influencia do irmão, Geraldo entrou muito cedo nas camadas jovens do Flamengo onde rapidamente perceberam que era um predestinado. Entabuou amizade imediata com outra promessa local, um rapaz chamado Artur mas que com a bola nos pés se transformava em Zico e em casa era, simplesmente, o “Galinho”. Eram inseparáveis. Comiam e passavam horas na casa do acomodado Zico, filho de uma família de posses do Rio de Janeiro com um cartel político perigoso para anos de ditadura. Um filho mulato adoptado como se referiam a ele. Junto dos dois craques do Flamengo caminhava sempre outro mulato de talento inquestionável, Pintinho. Só os separava a cor das camisolas. Pintinho era a resposta do Fluminense à dupla Geraldes-Zico e entre os três a imprensa tentou cozinhar uma rivalidade que nunca existiu. Passavam tardes deitados nas areias do Leblon e noites nas boîtes de Ipanema como se fossem siameses. Só em campo se separavam, brevemente, mas com a camisola do Brasil o trio começava a impressionar.
Se a Zico lhe chamavam já o “Pelé Branco” a Geraldo chamavam-se directamente o “sucessor do Rei”. Razão não lhes faltava. Com 22 anos o médio tinha já mais de 160 jogos com a primeira equipa do Flamengo e sete internacionalizações. Era o ídolo das claques flamenguistas e um alvo de cobiça para todos os clubes europeus. Era também um jogador distinto que ouvia música, lia obras de cariz político e social ao mesmo tempo que se mostrava um eterno despreocupado da exigência da alta competição.
A morte precoce raptou-o antes de poder fazer história no relvado. Quatro anos depois o Flamengo sagrou-se finalmente vencedor da Copa Libertadores para ganhar a Intercontinental no ano seguinte. Nessa equipa, liderada por Zico, havia uma sensação de perda ainda no ar. A falta de um génio como Geraldo que estava também marcado para ser parte do onze que subiria ao campo em Sarriá na tarde em que a Itália rematou três vezes no peito “jogo bonito” daquele inesquecível Brasil.
Geraldo Alves pertence a uma larga lista de jovens promessas chamadas a conquistar o Mundo que desapareceram antes do tempo. Para muitos brasileiros ele é a sua versão mais próxima de Duncan Edwards ou Valentino Mazzolla, vitimas de mortes trágicas e inesperadas quando ainda estavam na flor da idade. O seu sobrinho Bruno Alves jogou em todos os grandes torneios que o tio nunca pôde disputar mas é impossível olhar para o central, internacional por Portugal, e não sentir um pouco de nostalgia. Um pouco dessa saudade pelos assobios de Geraldo, o “moleque” que nunca conseguiu conquistar o Mundo.