Gaia, a cidade dos vinte clubes
Ruas sem Bola é um especial onde viajamos pelas maiores cidades de dez países europeus que nunca contaram até hoje com um clube na máxima divisão profissional.
Vila Nova de Gaia é uma cidade à procura de identidade em todos os sentidos. Durante décadas falou-se inclusive sobre o sentido da sua própria existência, tal é a absorção de identidade provocada pela sombra da cidade do Porto, cruzando o Douro. Limite sul do distrito do Porto, cercado pela capital do Norte e pelo maior concelho em extensão do país, Santa Maria da Feira, há múltiplas Gaias dentro dela mesma e em todas elas o mesmo problema: não há futebol de elite.
Nesse sentido, o núcleo urbano gaiense divide com Sintra o peso de ser um gigante demográfico num país com poucos polos desse peso e, ao mesmo tempo, um anão em relatos desportivos. E não é por falta de clubes ou amor ao jogo. A sombra do FC Porto explica muitas coisas mas não tudo. Afinal o que não faltam são casos de cidades dormitórios que cresceram desportivamente à sombra de outras maiores dando clubes para a posteridade do futebol nacional e até europeu. O melhor exemplo será sempre Villareal, uma extensão urbana praticamente de Castellón, capital provincial e que é a mais pequena cidade a ter um troféu europeu a passear pelas suas ruas. A grande diferença é, precisamente, identitária e económica.
Gaia é uma soma de cidades ou, pelo menos, é uma soma de vilas, como o próprio nome orgulhosamente indica. O seu lugar na história foi mais relevante do que o conceito actual pode adivinhar. Na ausência de pontes estáveis e duradouras até ao século XIX, as diferenças socioculturais entre Gaia e Porto eram relevantes mas, nessa altura, o que se entendia como Gaia era apenas o pequeno núcleo urbano onde se armazenavam as caves da ascendente industria vinícola desde a chegada em massa dos comerciantes britânicos como consequência do tratado de Methuen em 1703. Tudo o resto era o somatório de pequenas aldeias que alimentavam rivalidades entre si que foram ficando à medida que os tentáculos do urbanismo foram alargando a sua sombra pelo lado mais rural. Com o tempo essa expansão inclui ainda a zona costeira, praticamente abandonada a sul da foz do Douro onde São Pedro da Afurada sempre gozou de uma identidade piscatória muito própria, e também ao largo das margens do Douro em direção ao interior. Mas nunca esse exercício de união por estradas, caminhos e instituições incluiu uma sensação de unidade territorial e cultural. Gaia continuava a ser uma soma de algo mais do que um espaço com selo próprio. A chegada do caminho de ferro e das pontes idealizadas pelo gabinete de Gustavo Eiffel - D. Maria Pia, primeiro, e D. Luiz mais tarde - potenciou ainda mais a absorção da área urbana à zona de influência de uma cidade do Porto que tinha pouco ainda por onde crescer.
Criou-se nesse momento a ideia de que havia várias Gaias. A urbana, que era pouco mais que um apêndice da zona mais ribeirinha do Porto. A rural, um território imenso separado por terras e pequenas aldeias onde a agricultura era ainda dominante. A costeira, onde raramente havia povoações salvo em pequenos portos piscatórios. E a ribeirinha, que seguia o curso do Douro acima em direção à zona de produção vinícola. Passaram-se décadas até que todas elas começaram, através da criação de estradas, a sentir-se unidas umas às outras mas, nesse momento, já era tarde para criar, com elas, a ideia de uma cidade de todos.
Nesse contexto de separação permanente de identidades o futebol chegou. A sua implementação no norte foi rápida e bem sucedida em quase todos os municípios. Menos no gaiense. Imediatamente a sul o Sporting de Espinho foi, desde os anos trinta, uma equipa capaz de competir nos campeonatos distritais de Aveiro e de participar na II e III Divisões nacionais quando a competição foi criada. Gaia, inserida nos Distritais do Porto, viu-se engolida não só pelos clubes da capital como aqueles que cresciam mais a norte, apoiados por um tecido industrial mais forte. Os clubes foram nascendo em cada uma das suas pequenas identidades territoriais, sem nunca nenhum deles ter sido capaz de romper essas fronteiras. Um cenário que sobrevive até hoje e explica o fracasso de todos os seus projectos desportivos.
Enquanto que noutros municípios houve progressivas fusões para criar clubes mais fortes, em Gaia produziu-se o efeito oposto, uma progressiva multiplicação que levou a que, até aos nossos dias, o espaço urbano gaiense fosse capaz de dar lugar não a dois ou três clubes de futebol mas sim a vinte. E nunca nenhum deles esteve sequer perto de chegar à Primeira Divisão do nosso futebol. Mesmo com a construção de infraestruturas - a partir dos anos 90, período em que as cidades dormitórios foram ganhando relevância desportiva como sucedeu com a Amadora, Maia ou Alverca - que superam em qualidade a de muitos clubes com historiais muito mais ilustres, os clubes gaienses viram-se sempre impossibilitados de competir ao mais alto nível por não contar nem com um importante apoio económico ou popular.
No primeiro caso isso deveu-se sobretudo à ausência de uma industria local. Gaia exerceu sempre muito mais como porto logístico - do vinho do Porto, primeiro, e da industria de transportes, mais tarde - e um centro de serviços, em detrimento de uma identidade industrial e económica própria. A maioria da sua extensão é rural ainda, não tem a cultura de fábricas de transposição nacional (com a excepção provavelmente da Cerâmica de Valadares) e portanto o mecenato ou investimento da economia local nunca teve o impacto desejado nos clubes. Por outro lado, o facto de cada um desses clubes ter uma implementação meramente local, frustrou qualquer possibilidade de criar um potenciar um ou dois clubes de todos os gaienses. Esse vazio foi ocupado essencialmente pelo FC Porto que, à medida que ia crescendo na região, encontrou a sul do Douro uma das suas maiores fontes de adeptos e até de jogadores, sobretudo no seu núcleo urbano. De certa forma o clube de Gaia passou a ser também o clube da cidade Invicta, ainda que de forma oficiosa.
Mas isso não impediu a criação de vários clubes que tiveram em algum ou outro momento, relatos curiosos que contar na liturgia desportiva do cidade.
O mais antigo clube gaiense é o Vilanovense FC. Surgiu em 1914, em plena era de expansão do jogo na região, na zona mais a norte do nucleo urbano gaiense, precisamente graças à influência de dois jogadores do FC Porto, João Brito e Camilo Moniz. Oito anos depois já participava nos Campeonatos Distritais do Porto, tendo vencido em 1943 a Segunda Divisão Distrital pela primeira vez. Desde então o clube participou em dezasseis edições do Campeonato da 2 Divisão e trinta nos Campeonatos de 2B e III Divisão, sem nunca ter estado perto no entanto de dar o salto ao primeiro escalão.
Parte da fama do clube adveio da sua formação, que conquistou vários títulos distritais durante os anos setenta e noventa, e de representar a zona mais urbana da cidade durante largas décadas. Foi com a camisola do clube que o brasileiro Hulk chegou a Portugal pela primeira vez, para actuar nos escalões de formação antes de rumar ao Japão de onde foi resgatado pelo FC Porto, a partir precisamente dos relatórios de observação que tinham da sua etapa como vilanovense. Em 2010 os problemas financeiros do clube levaram à refundação da identidade como Vila FC que entretanto normalizou a sua actividade, relegado apenas aos campeonatos distritais da Associação Futebol do Porto.
A decadência do Vilanovense coincidiu com o aumento de protagonismo de outro dos clubes da zona urbana da cidade, o Coimbrões SC. Foi precisamente aí que originalmente se tinham disputado os primeiros jogos do Vilanovense mas com a migração desse para a zona mais a norte, pouco depois da sua fundação, abriu-se o espaço para o nascimento de outra instituição, o que aconteceu em 1920, criando a primeira genuína rivalidade da cidade.
Ao contrário do Vilanovense a sua expressão foi sempre muito local e reduzido à sua zona histórica de influência até que a crise do seu rival local lhe foi abrindo as portas para ir ascendendo e no espaço de quatro anos, entre 2006 e 2010, abandonou o campeonato distrital da AF Porto e chegou até à 2 Divisão B, o terceiro escalão então do futebol nacional. Permaneceu quatro anos nesse nível antes de voltar a cair nos campeonatos distritais, fazendo o caminho inverso do último projecto ambicioso da cidade em dar o salto aos campeonatos profissionais, o Clube Futebol Canelas 2010.
Localizado na zona sudeste do concelho, Canelas não era uma zona com grande expressão futebolística na história do futebol do concelho, contando quase todas as suas presenças desde a fundação no tardio 1966 nas divisões secundárias dos distritais do Porto. Em 2010 a situação económica do clube, que estava paralisado há uns anos, levou a uma refundação e foi aí que chegaram ao clube investidores, entre os quais vários elementos ligados ao grupo Super Dragões, a principal claque de apoio do FC Porto. Vários dos dirigentes e jogadores eram membros activos da claque e rapidamente os jogos do até então desconhecido Canelas entraram no circuito da comunicação social, a reboque do peso da claque portista. Várias polémicas com agressões, dentro e fora de campo, em jogos do Canelas foram de mão dado com o crescimento desportivo do clube que chegou à II Divisão B ainda em 2018.
Pouco depois recebeu um investimento suplementar com a entrada na SAD do empresário açoriano César do Paço, conhecido pela sua ligação ao partido político Chega entre outras polémicas várias, que culminou com este a deter posição maioritária. Tudo isso ajudou o clube a construir um projecto estável que o tem actualmente na Liga 3, depois de ter chegado aos quartos-de-final da Taça de Portugal em 2020, o melhor resultado de sempre na competição de um clube de Gaia.
Outro dos principais clubes da urbe que nunca esteve perto de pisar a Primeira Divisão é o Valadares FC, a instituição que substituiu o CF Valadares que faliu em 2011, culminando um ciclo terrível para os históricos clubes da cidade. Se no campo do futebol masculino o clube de uma das zonas costeiras e industriais - graças à Cerâmica - tem tido pouca expressão, já a sua relevância no futebol feminino da zona tem sido notável, tendo conquistado inclusive a Supertaça nacional.
Além destes quatro clubes, a cidade conta ainda com outras dezasseis instituições de impacto meramente local.
A AD Grijó, CF Perosinho, CF Serzedo, CF Oliveira do Douro, CF São Félix, FC Avintes, FC Crestuma, FC Pedroso, União Levarense e o SC Arcozelo nunca tiveram mais relatos que contar do que servir de clubes locais para os jovens gaienses começarem a sua prática desportiva, tendo servido de rampas de lançamento de formação para outros clubes mais além de competir de forma consistente com as suas equipas sénior, que nunca foram mais além das divisões secundárias dos distritais do Porto.
O modesto Dragões Sandinenses guarda na memória ter sido o primeiro clube fora do circulo urbano a ter iniciado a prática desportiva - em 1921 - sem nunca ter ido mais além de sete temporadas no campeonato da 2 Divisão B, de onde caiu em 2005 para nunca mais voltar. O grande momento da sua história chegou com a histórica campanha na Taça de Portugal de 1996/97 que só acabou na visita ao velho estádio do Luz para defrontar o SL Benfica, tendo acabado por ser derrotado por um contundente 5-1.
Na zona mais a oeste da cidade, paredes meias com o mar, tanto o Canidelo SC como o Candal FC foram-se tornando reconhecidos formadores de jogadores, com protocolos inclusive com clubes do outro lado do rio, em particular o Boavista, aproveitando a dinamização urbana entre as duas zonas potenciadas pela construção da Ponte da Arrábida. Ambos nasceram nos anos vinte mas nunca passaram da III Divisão nacional e só adquiriram algo de expressão nas últimas duas décadas. Para terminar, mais conhecidos por brilhar noutros desportos, o FC Gaia (basquetebol) e o Gulpilhares (criado a partir de uma equipa de futebol popular num dos grandes polos do hóquei em patins em Portugal) começaram a sua viagem desportiva com o futebol mas acabaram por encontrar a sua razão de ser nas modalidades, atraindo o melhor talento de todo o concelho.
Na prática, Vila Nova de Gaia é a cidade europeia da sua dimensão que acumula, entre todos os seus clubes, o maior número de temporadas na II e III Divisão sem que nunca nenhum deles tivesse pisado sequer a primeira divisão. O cenário não promete ser diferente nos próximos anos. A incapacidade de fusionar identidades colectivas e a falta de espirito comunitário são o principal inconveniente para que de uma das cidades mais bonitas e visitadas do país nasça um clube de futebol capaz de fazer sombra aos grandes nomes do nosso futebol.