FIFA, Televisiva e o leilão do Mundial 86
Em 1982 a FIFA decidiu que entregar o seguinte Mundial de Futebol à Colômbia não era um negócio rentável e iniciou um leilão que marcou a linha a seguir para os próximos torneios.
Durante o Mundial de Espanha o presidente da FIFA, João Havelange, já tinha decidido vender a organização do seguinte Mundial à multinacional mexicana Televisa. Durante os dois anos seguintes montou uma armadilha à organização colombiana, que tinha sido eleita em 1978, enquanto jogava com os direitos da prova num leilão imaginário para dar a sensação de escolha democrática. Nada mais longe da verdade. Foi a primeira vez na história que uma multinacional marcou o rumo da história dos Mundiais. Não seria a última.
Jack Warner, anos mais tarde um dos maiores pesadelos de Sepp Blatter, foi a figura decisiva para o desenlace final de uma das maiores vergonhas na história das organizações de grandes eventos desportivos. O elemento nuclear no esquema montado por João Havelange para transladar a organização do torneio da Colômbia para o México. E, sobretudo, para dar uma sensação de transparência pelo meio. O então dirigente da CONCACAF liderou o comité designado por Havelange que viajou até Bogóta para discutir a organização com a federação colombiana. O país tinha assegurado a organização do certame nos anos 70, seguindo a política de rotação continental e, à primeira vista, era o candidato perfeito para cumprir com a política de rotação continental depois das edições no Chile em 1962, México em 1970 e Argentina em 1978.
Em 1982, no entanto, Havelange foi reeleito com base numa série de promessas que o brasileiro não sabia como cumprir. O torneio em Espanha tinha sido o primeiro em que o homem que liderava desde 1974 os destinos da FIFA tinha aberto às multinacionais. Vários contratos milionários foram assinados entre empresas internacionais e a FIFA para exclusividade de patrocinio e publicidade mas ainda assim o dinheiro a entrar era muito inferior ao que saía para pagar subornos e alimentar a cada vez mais insaciável máquina de poder montada pelo brasileiro.
Havelange precisava desesperadamente de dinheiro fresco para as arcas da FIFA e parecia evidente que um Mundial na Colômbia não era o melhor caminho para lográ-lo. Aproveitando a escalada de violência que o país vivia, com os sucessivos levantamentos das FARCS, a visita de Warner era já uma sentença ditada pelo presidente brasileiro. Durante uma semana o comité visitou as cidades que deveriam servir de palco para a prova mas no primeiro dia os organizadores já tinham sido informados que o relatório enviado a Zurique seria negativo e que o torneio seria retirado aos colombianos por razões de segurança.
Num acto de amor-próprio a federação colombiana entregou à FIFA a organização, evitando assim que o humilhante relatório visse a luz do dia. A quatro anos do arranque do Mundial, a FIFA começou o então o leilão pelo torneio entre as grandes potências económicas americanas, as que fossem capazes de suportar os gastos em tempo recorde e oferecer o melhor negócio à FIFA.
Na mesa estavam as propostas de Canadá, México, Estados Unidos e Brasil.
Os canadianos retiraram rapidamente a candidatura quando as exigências financeiras da FIFA foram conhecidas pelo comité organizador. O caso brasileiro foi ainda mais polémico. Havelange tinha sido presidente da CBF durante largos anos mas foi incapaz de eleger o seu sucessor quando acabou por vencer em 1974 a corrida a presidente da FIFA. A proposta brasileira foi uma oportunidade de ajustar contas com o seu sucessor. Estava claro que o país, a viver os últimos dias da ditadura militar, não tinha condições económicas para receber a prova e muito menos para dar a Havelange os números que este procurava para tapar as suas próprias contas.
Nem o declarado apoio da Rede Globo à iniciativa provou ser suficiente. A FIFA exigiu que a CBF demitisse o seu presidente – antes de começar a negociar. Quando Ricardo Teixeira, genro de Havelange, foi eleito no seu lugar, as entidades sentaram-se à mesa. A reunião durou pouco. No final, como tinha sido pactuado previamente, Teixeira retirou a candidatura e ficou com o posto que tanto queria e o duelo final ficou reservado a México e Estados Unidos, dois mercados onde o futebol procurava o seu espaço.
Á priori, dado que o México tinha recebido a prova em 1970, parecia claro que os Estados Unidos levavam vantagem. Os americanos pelo menos pensavam assim. A candidatura defendida pela federação americana era apoiada pela TIME-Warner. Havia dinheiro para os estádios, contratos televisivos apetecíveis e um desejo genuíno de utilizar o certame para divulgar o jogo no mercado norte-americano. Henri Kissinger liderava a candidatura e as suas viagens pelo Mundo para convencer os membros FIFA da importância do projecto americano pareciam um claro indicativo de que a organização levava o torneio bastante a sério. Mas por muito que a FIFA fosse dando sinais de aprovação, os mesmos que daria anos depois quando confirmou os Estados Unidos como organizador do Mundial de1994, a verdade é que a escolha estava tomada e tinha menos a ver com o projecto futebolístico e as condições económicas e mais com a influência de uma empresa em particular: a Televisa.
A empresa mexicana é ainda hoje o maior conglomerado media da América Latina.
Só a Rede Globo no Brasil pode considerar-se um rival da empresa dirigida durante décadas por Emilio Azcárraga. A multinacional era o suporte financeiro do governo do Partido Revolucionário, dominava completamente as instituições financeiras e culturais do país e tinha nos seus altos cargos elementos influentes do partido e do exército mexicano, de forma a que a FIFA tinha garantida a segurança que Colômbia e Brasil não podiam dar mas também a conivência de um governo que, ao contrário do norte-americano, poderia olhar para o outro lado quando as contas finais do torneio apresentassem um vazio aproveitando por João Havelange para sanear as suas dividas acumuladas como presidente da FIFA.
A empresa já tinha demonstrado o seu profissionalismo na cobertura do Mundial de 1970 e a sua relação com Havelange começou a forjar-se nesse mesmo torneio, quando o então presidente da federação brasileira ficou impressionado com a gestão de Azcárraga. A sua amizade selou-se na eleição presidencial de 1974, onde o papel da CONCACAF foi fundamental, e em 1982, quando voltou ao Brasil depois da final do Mundial, Havelange fê-lo no jet privado do mexicano. Nessa viagem de oito horas decidiu-se o destino do seguinte Mundial.
Apesar da melhor proposta no papel dos americanos o presidente da FIFA persuadiu o comité organizador do interesse em entregar a prova ao México. O país foi eleito com esmagadora maioria e nem um terrível terramoto, a um ano da fase final, foi suficiente para gerar dúvidas à FIFA de que a prova deveria ter lugar noutro cenário. O negócio, que anos mais tarde o próprio Jack Warner denunciou, implicava uma simples troca de favores. Os direitos da transmissão televisiva eram vendidos à Televisa pelo governo mexicano por 1 dólar. E o imenso lucro gerado pelas audiências televisivas e os direitos vendidos ao mercado europeu e asiático seria dividido entre o governo, a empresa e a FIFA. Era uma oportunidade de negócio única e o sucesso mundial da prova – reconhecida por muitos como o último grande Mundial – multiplicou os cifrões a valores inesperados.
Depois do Mundial de 1986 agestão da FIFA mercantilizou-se de forma definitiva. Se em 1978 o Mundial foi organizado em exclusivo pela Junta Militar - uma concessão forçada pela mudança de regime com a qual Havelange não contava - em 1982 no Mundial de Espanha já se tinha começado a notar o dedo de Havelange nos negócios paralelos que o governo espanhol e algumas das empresas patrocinadoras da prova foram forçados a assinar.
Mas o torneio do México marcou um antes e um depois. Sepp Blatter, então vice-presidente da FIFA, aprendeu a lição ao negociar, anos depois, o Mundial entregue ao Japão e Coreia do Sul quando ambos os países pretendiam organizar o torneio em solitário. O lucro dos cofres da FIFA passou a ser o principal catalisador para atribuir a organização do Mundial de Futebol como se foi descobrindo com o passar dos anos. Escolhas como a da África do Sul em 2010, da Rússia em 2018 e, sobretudo, do Qatar em 2022 acabaram por ter lugar porque o modelo pensado pelo todo poderoso dirigente brasileiro funcionou à perfeição no México 86. Tudo começou nesse voo, tudo acabou com Maradona erguendo o troféu e pela primeira vez uma empresa conseguiu comprar algo tão mágico como um Mundial de Futebol. Seguir-se-iam mais empresas e estados a conquistarem esse direito à custa de milhões que mantiveram a FIFA como uma das organizações com maior pujança económica até aos dias de hoje.