Chalana e a brisa do tempo
Fernando Chalana foi o mais brilhante artista do futebol português numa altura em que não gostávamos o suficiente de nós próprios para entender até que ponto eramos abençoados com tanto talento.
Não venceu a Bola de Ouro. Não precisou. Não conquistou nenhum troféu internacional, nem com Portugal nem com o seu clube de sempre. Também não precisou. Não é uma estrela de clips do YouTube. Nem falta lhe fez. E no entanto, apesar de tudo isso, não há ninguém que pense nos grandes nomes do futebol português e não lhe venha à cabeça Fernando Chalana.
Esse é o peso da sua lenda. Ao contrário de Eusébio, Figo e Cristiano Ronaldo nunca venceu a Bola de Ouro ou uma Taça dos Campeões Europeus. Não pertenceu a uma mediática geração de ouro como Rui Costa, Paulo Sousa ou João Vieira Pinto, apesar da sua ter sido uma das mais brilhantes e incompreendidas talvez do nosso futebol. Passou pelo estrangeiro mas, como quase todos os jogadores portugueses do seu tempo, deixou poucas memórias épicas dessa passagem o que não contribuiu para o elevar da sua fama, como Paulo Futre conseguiria depois com o Atlético de Madrid, sobretudo. Não era um goleador nem um playmaker, vivia na zona do pasto verde que sentia como sua, e driblava com a esquerda de forma tão maradoniana que a maioria já se esqueceu que era destro. Fez parte da última grande geração da Margem Sul, aquela que cruzava de cacilheiro o Tejo para iluminar os céus de Lisboa com o seu talento. Uma luz que teimou em nunca se apagar.
Não vale muito a pena falar de um futebolista como Chalana desde uma perspectiva wikipedica, contando títulos nacionais, internacionalizações, momentos icónicos com a seleção ou nas suas últimas etapas como profissional na periferia da cidade que melhor o entendeu e desfrutou do seu futebol. Para o resto da Europa, Chalana é sinónimo do Euro 84, um torneio que pertenceu por direito próprio a Michel Platini - em pleno apogeu da sua carreira - mas que muitos continuam a teimar que, na realidade, foi de Chalanix. Para os portugueses, Chalana é um nome que ecoa memorias ainda da rádio, desses relatos da tarde do último Benfica verdadeiramente dominador do futebol português, durante a década que mediou a sua chegada desde o Barreiro à sua explosão no Europeu de França.
Muito do que foi Chalana perdeu-se segundo a RTP por um incêndio mas o que ficou, em relato visual, é mais do que suficiente para entender que naquelas pernas havia algo de Garrincha e de Maradona, depois de Mané e antes de Diego. Foi talvez isso que lhe permitiu roubar o coração do Terceiro Anel numa época em que para os adeptos do Benfica vencer era tão natural que só isso era manifestamente insuficiente para empolgar quem quer que fosse. Toda a geração de setenta, a mais dominadora a nível nacional na história do clube, foi sempre vista como uma geração menor por culpa dos triunfos internacionais da década anterior, sofreu desse mal de comparação com a única e singular excepção do número 10 que sempre pareceu alheado a qualquer peso emocional que aquela camisola era capaz de transpor. Chalana jogava futebol debaixo do olhar atento da exigente massa adepta encarnado como se estivesse ainda num pelado do Barreiro. Talvez por isso seja justo pensar que habilidoso extremo tenha sido, genuinamente, o último e talvez o único “potrero” do nosso futebol moderno.
Fernando Chalana era tão gigante que raramente gerava o ódio que já começava a controlar o futebol português desde as entranhas nos rivais. Como Manuel Jordão ou António Oliveira, outros dois gigantes da sua geração, era um nome absolutamente consensual e reverenciado como tal, um digno herdeiro dos Artur de Sousa, Peyroteo, Matateu e Eusebio que tinham abrilhantado o futebol português a cada geração que passava.
A sua geração ficou sempre marcada por uma espécie de suspeita por parte dos adeptos que a associam aos fracassos internacionais dos seus clubes, às suas passagens pelo estrangeiro sem deixar marca e pela incapacidade de levar a equipa das Quinas a grandes eventos. Tanto Oliveira como Jordão e também Humberto Coelho, Manuel Fernando, Fernando Gomes, João Alves, Otávio Machado, Rodolfo Reis ou Nené sofreram desse peso emocional, até porque antes tinham estado os Magriços, daqui a nada chegaria a “Geração de Ouro” e a final dos anos oitenta os Futre, Rui Barros, Diamantinos e companhia voltariam a finais europeias. Olhando para trás, com perspectiva, nunca se foi suficientemente justo com esses nomes. Falta literatura, reportagens e debate sobre esses futebolistas para recolocá-los no seu devido lugar. Chalana, curiosamente, nunca precisou disso. Era demasiado grande para deixar-se cair na sombra quando o seu futebol era magia pura.
No final de contas, em dias assim, a maior homenagem que se pode fazer a um homem como Chalana é vê-lo jogar. Seja em clips curtos do YouTube, em reportagens ou nos vinte e quatro jogos completos disponíveis nessa bíblia colectiva que é o Footballia. Também importa ouvir aqueles que o viveram, partilhar as suas experiências e emoções, como fez o João Gonçalves no seu podcast FeverPitch. Sobre todas as coisas, o fundamental é recordar. Uma pessoa só morre quando a última pessoa que o amou, que o admirou, que o recordou morre. Talvez por isso, nomes como Fernando Chalana têm tudo para ser realmente eternos. Cabe-nos a nós fazer a nossa parte e não esquecer. Só isso. Não esquecer daquele encantador de serpentes que fazia da bola uma prolongação da sua bota, do seu cabelo e farto bigode uma continuação do seu equipamento e do seu drible uma extensão da própria brisa do vento. Cada vez que a brisa cruze o Tejo é perfeitamente possível que Chalana esteja a passar por ali.
Texto muito bom. So uma questao, "Tanto Oliveira como Jordão e também Humberto Coelho, Manuel Fernando," aqui era para ser Manuel Fernandes correto?