Artur Jorge, o Rei que Portugal quis esquecer
Foi o primeiro treinador português a vencer uma competição europeia. Garantiu que o sonho de Pedroto não morria mas foi também goleador, filósofo e um homem de causas profundas.
A história está cheia de ses. Mas também de antes e depois. Hoje o treinador português é uma referência absoluta e incontestável no mundo do futebol de elite. Já não existem barreiras nem preconceitos que impeçam um técnico nacional de alcançar êxito fora de portas. Nem sempre foi assim. Aliás, acontecia precisamente o contrário. Durante larguíssimas décadas o treinador nacional estava destinado a treinar clubes pequenos porque os chamados Grandes, desde a sua crónica arrogância, sentiam que só homens vindos de fora tinham a capacidade técnica e humana para liderar projectos ganhadores. Foi por isso que até ao 25 de Abril apenas por quatro vezes um treinador nacional foi campeão da 1ª Divisão. Que Mário Wilson se tornou no primeiro técnico luso a ser campeão com o Benfica, dois anos depois da Revolução dos Cravos. E que José Maria Pedroto, o homem que seguiu a escola táctica iniciada por Cândido de Oliveira e seguida por nomes fundamentais como Fernando Vaz ou Juca, se converteu no primeiro treinador português bicampeão. Esse foi um dos momentos mais singulares da história do futebol nacional mas o Zé do Boné, por ironia do destino, nunca conseguiu alcançar a glória europeia. Até em 1984, quando guiou o seu FC Porto à final de Basileia, foi forçado a ver desde casa como o seu adjunto António Morais era batido, de forma controversa, pela raposa italiana Giovanni Trapattoni, então o lider indiscutivel do futebol italiano e técnico de uma Juventus avassaladora. Os títulos europeus e as finais perdidas pelo Benfica, tinham tido sempre dedo estrangeiro. Mas quando os Dragões voltaram a um grande palco, foi um técnico português que comandou a comitiva. Sem ele talvez tudo tivesse sido diferente. Como o tempo passou depressa e depois dele vieram nomes maiusculos e muito mais mediáticos, como José Mourinho, a memória foi-se esquecendo do seu papel decisivo. Mas se há um homem que merece ser reconhecido como alguém capaz de criar um antes e um depois para uma profissão que hoje dá prestigio e milhões, esse alguém é Artur Jorge.
Não é fácil ser-se grande em algo. Sê-lo em várias dimensões está só ao alcance dos predestinados. Artur Jorge era um deles. Foi um dos maiores avançados da história do futebol português e, no entanto, todas essas gestas goleadoras – primeiro com a Académica e, mais tarde, com o Benfica – foram esquecidas pela sua ainda maior lenda como técnico. Era um avançado diferente, reflexo da sua forma de ser, metódica e filosófica. Amante de livros, autor de um poemário, coleccionador de arte e pensamentos, Artur Jorge foi o exemplo perfeito do filho pródigo da burguesia portuense que cresceu no clube dos seus amores, o FC Porto, com quem se estreou como sénior antes de abraçar a paixão pelos estudos e rumar a Coimbra. Aí foi um dos pilares, juntamente com o seu grande amigo Toni, que conhecera ainda como júnior, Gervásio ou Manuel António, de uma histórica Académica de Coimbra, finalista da Taça de Portugal em duas ocasiões. A última dessas finais, marcada pela luta estudantil que transformou o Jamor no maior comicio político contra o regime fascista – e como explico no livro Bring me That Horizon, num dos jogos mais importantes da história do futebol europeu – não contou com o seu contributo porque, já com contrato assinado com o Benfica, foi impedido de jogar com o serviço militar como desculpa. Quando na seguinte temporada aterrou na Luz, Artur Jorge chegava aquele que ainda era o clube de Eusebío, mas cabia-lhe a ele co-liderar uma nova estimulante geração de talentos que iam desde José Henrique e Humberto Coelho no sector defensivo a uma das linhas de ataque mais irrepetíveis da história do nosso futebol. Nesses anos, além de um Eusébio lesionado recurrentemente, haveria Vitor Baptista, Nené, Rui Jordão e o próprio Artur que, no meio de tantas estrelas, ainda assim seria duas épocas Bola de Prata. Apesar do seu famoso pontapé de moinho, as lesões, a qualidade de um Benfica histórico e esquecido porque não viveu noites europeias à altura dos seus predecessores e as suas próprias inquetudes levaram-no primeiro a Belém, onde jogou os últimos anos da sua carreira, e depois à companhia daquele que seria, para sempre, o seu grande mentor, José Maria Pedroto. Com o “Mestre” expulso, pela segunda vez, do FC Porto, a relação entre ambos estreitou-se e rapidamente o veterano técnico entendeu que apesar de há muito trabalhar com António Morais como adjunto, era em Artur Jorge em quem via o futuro sucessor das suas ideias e lideraça. Foi por isso que, quando Pinto da Costa venceu em 1982 as eleições para a presidência do FC Porto, que Pedroto desenhou o futuro desportivo do clube, assumindo ele um papel similar ao Manager britânico, como director desportivo, deixando o treino e o comando do banco ao seu jovem pupilo. O cancro impediu o sonho de Pedroto de se concretizar mas Pinto da Costa seguiu os conselhos do homem que reinventou os Dragões e nomeou Artur Jorge treinador principal para a época de 1984/85. O novo técnico não defraudou. Com uma equipa preparada por Pedroto e com uma mistura de promessas como Paulo Futre, certezas como João Pinto e lendas como Fernando Gomes, os Azuis e Brancos foram campeões pela primeira vez em seis temporadas. Mesmo tendo perdido Sousa e Jaime Pacheco para o Sporting, o projecto foi crescendo e seguiu-se primeiro o bicampeonato e depois a glória continental. Nessa histórica campanha de 1986/87, apesar do campeonato perdido para o Benfica do seu velho amigo Toni, os Dragões já com as suas duas figuras do meio-campo resgatadas das garras do leão, e com Mlynarzick, Juary e Rabath Madjer como principais figuras estrangeiras, um significativo upgrade aos anos anteriores, foram demoledores. A história recordará para sempre Viena, as palavras inspiradoras no balneário de um homem que se transformou, qual Napoleão em Austerlitz, num pastor de homens, esses “45 minutos para fazer história” que nenhum dos que estiveram presentes esqueceu. Mas antes houve o Dinamo de Kiev, o verdadeiro teste à grandeza do clube, superado pelo génio táctico do treinador e da imensa qualidade do seu plantel. Artur Jorge transformou-se no primeiro treinador português campeão da Europa e isso fez dele um dos nomes mais cobiçados do mercado de transferências. O seu profundo conhecimento de francês escancarou-lhe as portas de um país que começava a descobrir a sua paixão pelo jogo e a soltar os cordões à bolsa.
O projecto do Racing Matra Paris nunca ganhou verdadeiramente tração apesar do investimento milionário mas Artur Jorge deixou de imediato em França um impacto profundo por ser capaz de discutir futebol, filosofia e arte com jornalistas, dirigentes e adeptos, algo que nenhum outro técnico da sua geração, francês ou estrangeiro, era capaz. Quando o navio começou a abanar chegaram os cantos de sereia das Antas, um Porto que depois de ganhar tudo o que havia para ganhar com Tomislav Ivic – menos essa “Orelhuda”, cortesia de uma dobradinha de Paco Llorente – se tinha entregue à filosofia optimista de Quinito, sem êxito. Artur voltou então para um mano a mano com Eriksson, colocando frente a frente os dois treinadores mais importantes do futebol luso nos anos oitenta. Dividiram os espólios, com titulos e momentos memoráveis para ambas partes, antes de seguir cada um o seu caminho. O sueco voltou para Itália e o já então “Rei” Artur apanhou novo voo para Paris. Ao contrário do Racing, o PSG tinha uma base mais sólida e uma ambição a longo prazo. Durante duas épocas aguentou estoicamente a concorrência do ambicioso Monaco de Arsene Wenger e de um Olympique Marseille dominador mas também turbio nos corredores do poder. Tornaram-se célebres as suas conferências de imprensa no Parque dos Principes, as miticas noites europeias contra os gigantes espanhóis do Real Madrid e Barcelona que quase lhe abriram as portas do Santiago Bernabeu – o português acabou por ser preterido a favor de Jorge Valdano por uma questão económica – e o título que o consagrou como “Roi” além de “Rei”. Esse triunfo selou definitivamente a forma como o mundo do futebol olhava para o técnico nacional, algo que Carlos Queiroz e também Toni vinham ajudando a mudar desde dentro. Mas esse foi também o zénite da sua carreira. Depois veio a herança de Roy Hogdson ao comando da Suíça e um Euro 96 relativamente decepcionante e a chamada da traição com Jorge de Brito que lhe abriu as portas da Luz, nas costas de Toni, trocando uma amizade de décadas por um trabalho ambicioso, o de relançar as Águias no caminho do sucesso. Em contrapartida Artur Jorge passaria a ser reconhecido como o homem que inaugurou o “Vietname”, uma recordação que talvez manchou o seu legado histórico e que a curta e polémica passagem como seleccionador nacional, entre agressões de jogadores e arbitragens escandalosas de velhos conhecidos como Marc Batta, não ajudou a sanar. Em 1998 Artur Jorge parecia já um homem do passado quando a sua carreira não tinha ainda quinze anos. E as suas seguintes decisões, profundamente marcadas pelo falecimento precoce da filha, dos seus problemas de saúde e pela sua desconexação com o mundo circense em que o futebol se ia convertindo, lembrando a sua velha máxima de ver os jogos pela televisão com o som apagado e música clássica a tocar no fundo, fizeram dele e do seu inseparável bigode numa figura do passado. Quando Mourinho apareceu, pouco depois, trazendo com ele a arrogância e o perfume do novo milénio, o salto geracional deu-se de forma natural. Todos os treinadores portugueses beneficiaram e muito do êxito do homem de Setúbal mas tanto ele como outros vários nomes, do próprio Toni a Manuel José, passando pela geração de homens de confiança de Queiroz, incluindo o próprio, tinham muito igualmente que agradecer ao legado e impacto mundial que teve Artur Jorge no pico da sua carreira.
O futebol português recompensou Cândido de Oliveira, merecidamente, com o nome da Supertaça e só o divisionismo provocado por José Maria Pedroto na etapa final da sua longa e brilhante carreira o impedem de ser devidamente reconhecidos. Toni, que também disputou uma final continental, foi escolhido com critério pela Federação para ser a figura paternal do seu novo Canal. Mas de Artur Jorge pouco ou nada se falou, sobre Artur Jorge pouco ou nada se fez. De Artur Jorge, pouco ou nada se lembrou, nas últimas três décadas. E apesar do espirito pioneiro do primeiro, da aura revolucionária do segundo e do conhecimento e grandeza humana do terceiro, nenhum deles atingiu realmente o nível de glória e êxito que o Rei Artur. Para não falar de que ele, juntamente com António Simões e Toni, foi uma das figuras nucleares na criação do Sindicato de Jogadores e no seu certeiro e analitico discurso político sempre se reconheceu a sua dimensão como cidadão, um papel que desempenhava com lucidez e que o distanciava da imagem habitual do futebolista e treinador de futebol desde a sua juventude até ao momento de consagração. Mas nem isso pareceu servir para o colocar no pedestal que sempre mereceu e o esquecimento primou de forma generalizada. Do clube cujo ataque liderou e com quem venceu um dos campeonatos mais memoráveis de que há memória não houve referências nas redes sociais e na página oficial houve apenas uma pequena nota de pesâme. Até o clube que o viu nascer e que dele tanto se beneficiou, tem tentado cultivar nos últimos anos uma aura de importância histórica ao seu actual treinador, esquecendo muitas vezes que, talvez se Artur Jorge não tivesse pegado na equipa no trágico momento em que Pedroto se ia deste mundo, não haveria Porto europeu. Se calhar não haveria sequer 40 anos de Pinto da Costa na presidência. Esse é o verdadeiro peso do seu imenso legado. A sua memória pode ter sido esquecida, as suas gestas são imborráveis. Rei haverá sempre só um.
Acho injusto dizer que o FCPorto não quis nunca saber do Artur Jorge. Basta ir ao museu e vê lo lá.