Archibald Leitch, o construtor de catedrais
Detrás do seu génio estão alguns dos templos mais emblemáticos da história do futebol britânico. Da sua mente nasceu a ideia que se proliferou pelo mundo e fez dos estádios as novas catedrais.
Quase um milénio depois do fenómeno histórico conhecido como a era dos “construtores de catedrais” medievais, o século XX apresentou à arquitectura um novo e estimulante desafio. Erguer do nada o conceito de estádio de futebol, a catedral da modernidade, transformou-se na busca do novo santo Graal e nenhum homem chegou tão perto do toque sagrado como Archibald Leitch.
Anfield Road, Celtic Park, Highbury Park, Villa Park, Goodison Park, Old Trafford, Hampden Park, Stanford Bridge, Ibrox ou White Hart Lane. Catedrais, todas elas, do tamanho e simbologia de Westminster, Notre-Dame, Chartres ou São Pedro. Catedrais modernas, desenhadas para o culto da religião do século XX. Espaços construídos para a oração, o sofrimento e o êxtase.
Entender o impacto do cristianismo na matriz cultural europeia sem pensar nas catedrais erguidas como louvor aos céus durante o período medieval é não entender nada. O mesmo se pode dizer do futebol e dos estádios que se transformaram depressa em lendas, nomes que ganharam direito a um lugar na posteridade. Frios, abertos à intempérie, pouco confortáveis, sim. Mas únicos, espaços de adoração, campos de batalha improvisados, campos santos. Construir as catedrais que hoje vão desaparecendo, dando espaço aos novos complexos multiusos desenhados a régua e esquadro para os tempos do consumismo exacerbado, tornou-se de certa forma numa utopia para uma sociedade que começava a entender que o futebol já era mais do que um fenómeno de massas.
Ia a caminho de transformar-se em mais um osso do esqueleto social. Nessa peregrinação de construtores, de homens capazes de antever como poderiam ser os campos do futuro, nesse longínquo já passado, nenhum se destacou tanto como Archibald Leitch. A história pode ter cometido a injustiça de o relegar para um ínfimo segundo plano, mas foi este arquitecto escocês o homem que imaginou e construiu a matriz do que é para hoje a base de qualquer estádio convencional.
Archibald Leitch nasceu em 1865 em Glasgow.
Seria na sua cidade natal que deixaria três das suas obras mais emblemáticas, ainda hoje de pé, capazes de testemunhar para as novas gerações o seu engenho. Mas, naturalmente, quando Leitch começou a trabalhar como arquitecto profissional, poucos podiam ainda antecipar o sucesso que o popular desporto teria no século seguinte e assim sendo, o escocês dedicou-se ao mais convencional desenho e construção de fábricas e pontes no norte de Inglaterra. Esse traço industrial, espelho de uma revolução que chegava rapidamente ao seu final, marcou-o para sempre e durante os anos que se dedicou à construção de campos de futebol, deixou sempre exemplos da sua influência inicial, normalmente através do uso de simbologia industrial como chaminés, relógios ou tectos piramidais nas bancadas centrais.
A um ano de terminar o século XIX, então com apenas 34 anos, Leitch recebeu um encargo especial por parte do clube mais popular da sua cidade natal, o Glasgow Rangers, desejoso de construir um estádio à imagem do seu recente sucesso no recém-profissionalizado futebol escocês. O trabalho demorou apenas meio ano, entre o desenho e a construção e quando foi finalmente inaugurado, poucos podiam imaginar que Ibrox seria a primeira de dezenas de catedrais construídas debaixo do mesmo padrão pelo mesmo autor durante as quatro décadas seguintes.
O modelo de Leitch apostava, sobretudo, pela funcionalidade. Quatro bancadas, quase sempre fisicamente independentes, com um ou dois anéis, dependendo das exigências e popularidade do clube que o contactava, tectos rectangulares salvo na bancada principal, que habitualmente se transformava na matriz inspiradora do recinto e utilização de cimento, aliados ao habitual uso de aço e madeira, para dar forma às bancadas. Com esse modelo, Leitch viajou pelo Reino Unido nos anos seguintes transformando ideias em edifícios, cada qual com o seu elemento mais distintivo, a cereja no topo do bolo.
A Kop de Anfield Road, a Clock Tower de Highbury Park, a mítica Stretford End em Old Trafford ou a Bancada Trinity em Birmingham, são apenas exemplos do seu génio incontestado que deu corpo e alma a mais de trinta estádios do futebol britânico. Em 1929, Herbert Chapman contactou-o pessoalmente para transformar a casa do Arsenal no mais moderno dos estádios europeus e depois de dois anos de trabalho, Highbury Park renasceu das cinzas e assim se manteve até ao deablar do novo milénio. E não foi o único.
A maioria dos recintos desenhados e construídos por Leitch mantiveram-se tal qual o seu arquitecto idealizou até ao desastre de Hillsborough. Alguns sofreram os efeitos dos bombardeamentos da II Guerra Mundial mas Leitch já não podia coordenar as obras de readaptação ao pós-guerra. Tinha falecido meses antes do arranque do conflito, consagrado já como uma iminência internacional da arquitectura.
A tragédia vivida em Sheffield, foi o toque de finados para as catedrais de Leitch. O relatório Taylor exigiu a modernização dos recintos desportivos, a instalação obrigatória de assentos e a maior parte dos clubes começou um longo caminho de reestruturação dos seus estádios para adaptar-se. Em 2006, a inauguração de Ashburton Grove, a nova casa do Arsenal, significou o fim de um dos recintos mais queridos do arquitecto.
Se muitos dos estádios (Stanford Bridge, Old Trafford, Ibrox Park) se pareciam cada vez menos ao seu plano original, a demolição da casa quase centenária dos gunners significava o definitivo ponto final na sua etapa gloriosa. Só Craven Cottage, recinto do Fulham, permanece tal qual foi idealizada no início do século XX. Nos restantes casos, pequenos detalhes sobrevivem, como a bancada principal de Goodison, a parte exterior de Villa Park ou a fachada de Ibrox, mas a modernização do jogo implicou uma profunda metamorfose da estrutura destas catedrais modernas.
Hoje, os estádios modernos são encarregues pelos clubes a verdadeiras agências de arquitectos e orçamentos em centenas de milhões de euros. Nas primeiras décadas do século XX, o trabalho desenvolvido por Leitch era essencialmente mais solitário e muito mais acessível aos bolsos dos clubes. O escocês desenhava e construía a maioria dos recintos, utilizando pequenas empresas com as quais colaborava pontualmente. Muitas vezes os clubes preferiam contratar arquitectos menores e era Leitch quem supervisionava os projectos, assinando-os sem realmente estar por detrás da sua concepção original ou construção.
Entre os seus conceitos mais inovadores estão, sem dúvidas, as bancadas inspiradas nos velhos anfiteatros gregos, que permitiam criar uma base sólida – apesar da madeira utilizada, muitas vezes, ter provocado incêndios e algumas tragédias difíceis de esquecer – para os adeptos seguirem o jogo sem estar, fisicamente, sem um suporte que não fosse o do adepto no degrau mais abaixo. Uma inovação que permitiu que muitas das estruturas durassem uma centena de anos mais do que muitos inicialmente podiam imaginar quando foram construídas Leitch foi também o arquitecto da ideia de utilizar bancadas centrais com a maioria dos lugares preparados para receber adeptos sentados, com as superiores, com um bilhete mais acessível, essencialmente transformadas em zonas de pé, o famoso “peão”.
O arquitecto pensava no futuro, cada vez que desenhava um novo estádio, da mesma forma que planeava as fábricas para aguentarem o passar dos tempos e a exigências dos materiais. Sempre olhou com suspeita para o modelo continental do italiano Pier Luigi Nervi – mais circular, côncavo e quase sempre sem protecção para as cabeças como se fez popular no sul da Europa a partir dos anos vinte – e tal como Herbert Chapman lançou as bases definitivas da forma inglesa de jogar, também Leitch se tornou no santo e senha para todos os arquitectos britânicos que seguiram os seus passos e que se limitaram a procurar melhorar a sua magistral obra original.
Hoje, à medida que os principais clubes procuraram renovar ou criar novos estádios desde zero resta o consolo de saber que o homem que construiu as mais simbólicas catedrais do primeiro século do futebol europeu é tão imortal como os que olharam para o céu, no ano mil, e decidiram colocar a sua imaginação em pedra e a sua fé em obras para a eternidade.