A origem das substituições no futebol
Uma grave lesão num dos jogos mais importantes do ano mudou para sempre a identidade do futebol e abriu a porta a uma série de lendas que, até então, nunca teriam podido ter tido lugar.
Durante quase um século o futebol existiu sem substituições. Nada parecia justificar a troca de um jogador lesionado até que uma mítica final da Taça de Inglaterra em Wembley mudou para sempre o rosto do futebol profissional. A duríssima lesão de Gerry Byrne, figura do Liverpool de Bill Shankly, abriu de par em par as portas para uma das introduções fundamentais do futebol moderno.
Imaginem que todos os golos míticos marcados por suplentes desapareciam. Golos como o de Fairclough que abriu a lenda do Liverpool europeu. De Sheringham e Solskjaer em Barcelona para dar a Alex Ferguson a sua primeira Champions League. Do brasileiro Juary em Viena, na noite gloriosa do FC Porto. De Éder, o herói de Paris. Imaginem todos esses jogos recriados agora com equipas reduzidas a dez, nove ou oito homens. Esse podia ter sido o destino do futebol porque, na realidade, Esse foi o presente do beautiful game durante quase um século. Um universo onde em campo podiam jogar apenas e só os vinte e dois titulares. Ninguém mais, passasse o que passasse, podia interferir no destino do jogo. Esse mundo acabou em 1965.
Depois de uma série de lamentáveis e violentos episódios nos anos cinquenta, foi a Taça de Inglaterra, no seu majestoso cenário final em Wembley, que abriu as comportas da modernidade. Um ano depois desse jogo o International Board, controlado pelas federações britânicas juntamente com a FIFA, autorizou pela primeira vez a utilização de um suplente em caso de lesão de algum jogador em campo. Um ano depois, apenas, se ampliou esse direito a substituições de cariz táctico. Antes dos anos setenta o futebol mundial tinha abraçado a novidade. Nunca mais acabariam as equipas com dez jogadores em campo sem motivo. Nunca mais se podia escrever o destino de um jogador que começava o encontro sentado no banco de suplentes sem adivinhar que papel poderia ter no desenrolar do encontro. Em conjunto com a introdução dos holofotes, dos torneios continentais europeus e dos cartões – novidades praticamente contemporâneas – a formalização institucional das substituições traçou o destino do futebol moderno.
Primeiro foi Bert Trauttman e o seu pescoço partido. Depois foi Ray Wood, forçado a ocupar uma posição no ataque por culpa da lesão que o impediu de continuar a guardar a baliza do Manchester United. No espaço de três anos duas lesões sérias tinham provocado o destino na final da Taça de Inglaterra. Muitos começavam a olhar para a dureza nos campos de futebol mais para além da chamada virilidade, alimentada durante décadas por adeptos, dirigentes, técnicos e até pelos próprios jogadores. Parecia começar a formar-se um consenso de opiniões em que realmente existiam situações em que os futebolistas podiam ter o direito de sair sem prejuízo da equipa que, para não ficar com um homem a menos, habitualmente forçavam os futebolistas a jogar com dor o que apenas aumentava o grau da lesão. A gota que transbordou definitivamente o copo aconteceu em Maio de 1965.
Gerry Byrne era uma das torres ao serviço do Liverpool de Shankly. Futebolista fundamental na sua revolução em Anfield, era um dos jogadores mais duros do futebol mundial. Mas nem ele era de pedra. No decorrer da final desse ano, contra o Leeds United treinado já por Don Revie, Byrne lesionou gravemente a coluna aos três minutos. Com uma dor insuportável aguentou estoicamente em campo e logrou inclusive assistir a Hunt para o primeiro golo, o golo que dava aos Reds a sua primeira Taça de Inglaterra. A performance foi heróica mas em 1965 a condescendência com a violência no futebol não era a mesma. Vários dirigentes, atletas e jornalistas reclamaram contra a federação por não permitir que um jogador com uma lesão como a sua não pudesse ser substituído. O debate foi intenso e alargou-se durante semanas. Finalmente a FA deixou cair a toalha. A partir desse momento a história do futebol mudou radicalmente.
A Federação inglesa permitiu a introdução de um suplente – o número 12 – que poderia ocupar qualquer posição de um jogador que fosse forçado a sair de campo lesionado. O primeiro jogador a entrar em campo pelo respectivo motivo foi Keith Peacock, jogador do Charlton que foi forçado a tomar o lugar do lesionado guarda-redes Mike Ross aos onze minutos de jogo. Estavamos no dia 21 de Agosto de 1965. Poucos minutos depois, outro suplente, Bobby Knox, foi lançado para substituir um colega lesionado no ataque do Barrow num jogo contra o Wrexham e acabou por marcar o golo decisivo. Meses depois o mesmo Knox foi lançado para a baliza de forma desesperada para travar um penalty que provocara a lesão do guarda-redes. Parou-o. Foi o prelúdio da era dos “Super-Sub”, jogadores suplentes decisivos.
Nos dois primeiros anos a federação inglesa permitiu apenas que a troca se fizesse apenas e só em caso de lesão. Mas a partir de 1967/68 o critério foi alargado por culpa de Don Revie.
O treinador do Leeds encontrou uma falha no sistema, reflexo habitual da sua forma de gerir os destinos de um clube que tinha levantado quase do zero até o transformar numa das mais admiráveis potências nacionais. Para chegar a esse ponto Revie não olhava a meios e não se preocupava minimamente com a ética. Foi dessa forma que nos jogos da sua equipa, nos últimos vinte minutos, algum jogador parecia sempre lesionar-se. Se a equipa perdia, lesionava-se um central. Se ganhava, lesionava-se um avançado. Com esse método Revie conseguia sempre ajustar o onze ás suas necessidades. Os outros clubes começaram a queixar-se da frequências das lesões – que nunca duravam mais do que um dias – e a FA voltou a mudar a lei com a tinta ainda por secar.
A partir desse ano qualquer jogador podia ser utilizado como substituição táctica mas, caso houvesse uma lesão posterior, a equipa teria de assumir ficar apenas com dez homens em campo. A pouco e pouco o critério foi-se ampliando. Nos anos setenta eram dois os suplentes escalados – habitualmente um guarda-redes e um jogador de campo – número que foi posteriormente ampliado a três para passar na década seguinte a cinco. O número de substituições também se alterou e em 1986 passaram a ser duas as permitidas no futebol inglês.
O resto do mundo tinha já seguido o exemplo. O Mundial de 1970 no México foi o primeiro a permitir substituições (ironicamente a FIFA já as permitia na fase de qualificação mas não na fase final) e o Europeu 1972 na Alemanha seguiu o exemplo ao mesmo tempo que as mesmas eram já prática comum nas ligas nacionais e torneios continentais de clubes. Os anos noventa trouxeram novidades. Ampliaram inicialmente uma terceira substituição mas apenas reservada para o guarda-redes, uma decisão tão polémica que durou apenas um ano. Desde 1997 que se permitem realizar três alterações, inicialmente a partir de cinco jogadores e depois a sete. Nos Mundiais, desde 2006 que todos os convocados se encontram disponíveis para entrar em campo. A pandemia do Covid-19 forçou uma nova alteração e ampliou a cinco as substituições - com três pausas - enquanto que a preocupação com as lesões cerebrais ampliou a seis, no caso de um jogador ter sofrido um golpe severo na cabeça.
A mudança do critério foi permitindo ao futebol evoluir taticamente. Os jogadores suplentes passaram a ocupar um papel determinante, tanto pela frescura física como pelos matizes tácticos que traziam ao terreno de jogo. A normalização do papel do suplente como chave estendeu-se ao longo dos anos oitenta e na década seguinte já era cada vez mais consensual que uma equipa podia ganhar os jogos desde o banco com a alteração correcta.
A lesão de Byrne, estoicamente suportada, abriu o caminho para a modernidade e como passou com a introdução dos cartões, permitiu-nos também questionar o que teria sido do jogo se esta fosse uma lei vigente nas décadas anteriores tal era o histórico de jogos míticos que foram decididos muitas vezes pela ausência ou presença forçada de um jogador lesionado. Byrne colocou, sem saber, o ponto final a essa equação.