A asfixiante Superliga que todos potenciaram
A Superliga já existe, é económica, e não vai desaparecer tão cedo. Mas nunca foi inevitável se o resto do futebol europeu tivesse feito bem o seu trabalho. O que não aconteceu.
O defeso voltou a demonstrar uma realidade evidente que nem a pandemia do COVID-19 veio alterar minimamente. Apesar de todo o pânico que o projecto de Florentino Perez levantou, a Superliga já é uma realidade económica há largos anos e veio para ficar. Basta ver como a Premier League bateu os recordes dos vários mercados na última década desde que se transformou na primeira competição a superar os 1000 milhões de euros em negócios enquanto os restantes grandes campeonatos vão progressivamente gastando menos e menos. O cenário é preocupante para todos menos para os ingleses mas a responsabilidade de chegar a este ponto é de todos.
Não há muito tempo atrás se falava da liga espanhola como a liga das Estrelas ou se mencionava o campeonato alemão como o torneio do futuro. Foi há sensivelmente dez anos. Nessa altura o futebol espanhol não só dominava o mundo a nível de seleções. Os Madrid-Barcelona, os Mourinho-Guardiola, Ronaldo-Messi, eram os encontros que todo o planeta parava para ver. As equipas espanholas brilhavam na Europa entre títulos e finais. O talento individual nos campos de jogos espanhóis era superlativo e o ritmo a que se jogava era o seu, o de um futebol mais técnico e táctico, com um ritmo mais baixo e discutido no miolo. Era o presente e o futuro inevitável. Não o foi. Poucos meses depois e o triunfo da ideia do Gegenpress começou a enterrar o tiki-taka para os futurólogos, e tanto as humilhações infligidas por Dortmund e Bayern aos gigantes espanhóis pareciam anunciar uma nova era. Uma era mais fisica e de correria em campo mas também de maior respeito pelo adepto e pelo consumidor, com um mercado de transferências mais sóbrio e de valorização de activos. Foi sol de pouca dura.
Nessa altura já a Premier League tinha superado os 1.000.000 de euros em negócios num só mercado. Os melhores jogadores podiam estar em Espanha ou Alemanha mas os clubes britânicos começaram a importar treinadores estrangeiros a um ritmo similar ao de futebolistas continentais nos seus inícios, em 1992-93, ou de técnicos em 2004/05. Tinham sido a grande competição a finais dos 2000s, apesar do escasso êxito europeu nesse período - só duas Champions League e nenhuma Taça UEFA para mostrar - e preparavam-se para viver uma nova era.
Ferguson abandonava a sua posição sagrada, arrastando o Manchester United para uma crise similar a que sofria quando ele chegou a Old Trafford em 1986. Pouco depois Wenger, já extremamente desgastado, seguiu o mesmo destino, provocando que os dois gigantes da Premier League entrassem na sua etapa mais dura. O terceiro em discórdia, o Chelsea, ia somando títulos e ciclos curtos que dificultavam qualquer ideia de potencial hegemonia. De Liverpool não chegavam boas novas e o vazio de poder foi ocupado pelo dinheiro. O dinheiro á séria.
Desde há umas temporadas o Manchester City era financiado por um fundo dos Emirados Árabes Unidos mas foi nesse vazio de poder que deu o seu salto definitivo. Nesse cenário reabriu o interesse por uma competição que muitos estavam habituados a ver como decidida quase à partida pelos mesmos players de sempre. Com a progressiva chegada dos melhores treinadores que tinham elevado a qualidade em Espanha, Alemanha e Itália, os clubes ingleses entraram numa nova etapa de reformulação competitiva. A renovação dos direitos televisivos deu-lhes músculo financeiro e se a liga ainda não era capaz de atrair a elite suprema, muitos dos futuros cracks iam chegando quase de forma silenciosa à medida que a melhor geração de formação inglesa em muito tempo ia conquistando o seu espaço.
Tudo isso foi funcionando se forma quase silenciosa, com um produto sempre muito bem trabalhado desde o ponto de vista mediático e com a influência mediática do velho império inglês a garantir que, mesmo em épocas de vacas magras a que se seguiu o êxodo de jogadores chave como Henry ou Cristiano Ronaldo, a Premier continuava a ser a competição mais seguida por todos fora do espaço europeu.
Paralelamente os restantes campeonatos tiveram a sua oportunidade de agir mas todos cometeram erros similares. Itália desde o início da década de 2010 entrou numa profunda crise económica e perdeu qualquer relevância no mapa desportivo. Os gigantes de Milão e Roma viviam afundados em crises financeiras e a Juventus aproveitou-se disso para ter uma década tranquila e bem sucedida. O estado decrépito dos recintos de jogo, os problemas com os ultras, a fuga de talentos individuais e a dificuldade de encontrar treinadores com ideias refrescantes transformou o gigante dos anos 80 até 2000 no quadro das grandes ligas num anão.
Na Alemanha a sua grande virtude foi também o seu maior problema. Os alemães produziam conteúdo de qualidade a todos os níveis mas para consumo interno. Nunca pensaram em expandir-se, o seu modelo de gestão baseado na Lex Leverkusen do 50+1 fechou a porta ao dinheiro estrangeiro e o seu modelo de jogo, sempre muito apoiado no físico e na pressão, exclui a chegada de vários futebolistas de topo. Nessa dinâmica a maioria dos clubes continuou a trabalhar com orçamentos modestos, projetos de escassa ambição e no fim de contas, tal como em Itália, o domínio do Bayern tornou-se inevitável quando conseguiu sugar todo o talento individual ao seu único rival lógico, o Borussia Dortmund.
O caso espanhol foi ainda mais gritante. Inebriados com os seus triunfos como seleção e com o êxito do modelo mediático oferecido pela cultura dos Clásicos, o futebol espanhol decidiu vender-se apenas e só como o recinto onde Barcelona e Real Madrid passeavam o seu talento e as suas estrelas. Com isso ignoraram histórias fantásticas como o renascimento do Atlético de Madrid com Simeone, a grande época de Emery ao comando do Valencia, a ascensão do Sevilla ou a consolidação de projetos como o Villareal ou Real Sociedad. Todos eram personagens excessivamente secundárias em comparação com o excessivo ruido à volta dos Messi-Ronaldo. Isso viu-se reflectido na distribuição do dinheiro e na forma como a liga condicionou a competição e a sua exposição mediática apenas baseada nesses clubes, a tal ponto de assinar um contrato de uma Supertaça em modo de final four mas onde Real Madrid e Barcelona tinham sempre de estar representados.
Espanha teve tudo na mão para ocupar um lugar mais prominente na elite mundial mas em vez disso viu-se esgotar uma geração histórica enquanto os restantes clubes iam falindo à medida que tentavam acompanhar o ritmo. E isso que ainda assim, nas provas europeias, continuavam a ser os melhores e mais competentes, fruto do conhecimento técnico e de treino e do talento individual dos seus interpretes. Mas este ia reduzindo-se a cada ano que os grandes nomes do passado de reformavam ou eram atraídos pelos milhões de França ou Inglaterra. Até ao ponto da exaustão. O triunfo do Real Madrid na Champions League 2022 é paradigmático dessa mesma política, com estrelas como Benzema e Modric que estavam lá no inicio da década. A renovação foi lenta e comprometeu a sua sustentabilidade financeira a tal ponto que o Barcelona vive a maior crise desportiva da sua história e são eles, os clubes espanhóis, os que mais empurram pela ideia de uma Superliga que os salve de si próprios.
Nesse contexto os ingleses limitaram-se a fazer tudo bem. Ofereceram o melhor produto ao mundo - não só através da televisão mas com o contrato de exclusividade premium com a empresa Electronic Arts, conquistando o emergente mercado dos videojogos - e foram recuperando os melhores jogadores internacionais, sem pressa. Ao mesmo tempo transformaram os jogadores que eram vistos de lado no apogeu dos Madrid-Barcelona em autênticas lendas, como sucedeu com De Bruyne, Bernardo Silva, Mo Salah, Sadio Mané e companhia. Sempre com projetos desportivos sólidos, treinadores de vanguarda e aproveitando bem os fundos à sua disposição. A forma como o dinheiro é distribuído pela Premier League - o que inclui os promovidos - garante que à medida que o Manchester United continua a rebentar com a caixa, também os West Ham United ou Nottingham Forest possam gastar mais do que todas as equipas do continente, com honrosas e clássicas excepções. Os organizadores da Premier - ao contrário daqueles que alimentam os cargos de gestão das ligas espanholas, italiana, francesa ou alemã - entenderam a importância do produto por cima das instituições.
Dessa forma garantem que todos os clubes têm sempre o melhor talento disponível à mão e se o West Ham quer um dos melhores futebolistas brasileiros como é o caso de Lucas Paquetá não precisa de se endividar para o contratar, até porque de Espanha ou Itália nenhum clube rival poderá igualar as suas condições. Os gigantes do mercado são agora os ingleses, da cúpula à base. Competem entre eles e fazem-no sem qualquer pudor, esvaziando o resto da Europa do seu melhor talento. Dinheiro que, por sua vez, serve apenas para tapar buracos financeiros, dividas, uma cultura de comissões e que raramente acaba por elevar a qualidade das ligas vendedoras.
No final o espirito da Superliga acaba por ser esse, drenar o mundo de talento e de motivos de interesse para torná-lo irrelevante. Economicamente isso já sucede com a Premier League. Desportivamente é uma inevitabilidade. As ligas nacionais estão a definhar. E é exclusivamente da sua responsabilidade.