UEFA Superleague
A UEFA está a dar os passos decisivos para abraçar o modelo da Superliga que não é mais do que fechar o ciclo que o visionário Gabriel Hanot tinha idealizado nos anos cinquenta.
Gabriel Hanot era um génio visionário. Durante anos a sua relação de amizade com Henri Delauney, outro pioneiro francês a quem devemos, entre outras coisas, o Europeu de seleções, levou a que ambos sonhassem com um futebol além fronteiras. O jogo até aos anos cinquenta era ainda iminentemente local e só existia uma verdadeira dimensão nacional em países pequenos em tamanho, bem comunicados pelo comboio ou recém-fundados após o fim das eras imperiais. Era o caso do Benelux, do Reino Unido e das nações que brotaram do império Habsburg. Para as restantes nações, onde a comunicação era lenta e distante, a dimensão local do futebol era tudo e os campeonatos regionais e distritais tinham um peso imenso, fosse na Alemanha, Espanha ou Portugal. Já nesse momento estes dois homens, entre tantos outros, começaram a olhar para o futebol como algo maior, um fenómeno de nações, um fenómeno continental. Lutaram durante anos por reformular competições e torneios, mesmo com uma guerra mundial devastadora pelo meio. Acreditavam no poder de união que o jogo oferecia mas também que era melhor lutar num relvado, entre cavalheiros, do que num campo de batalha.
A sua dimensão e a evolução das comunicações do pós-II Guerra Mundial, com a normalização progressiva dos voos comerciais e o aumento da industria automóvel com as rodovias como novo pulmão de comunicação nacional e continental, abriram as portas para o fim dos torneios de regiões e o inicio das competições continentais. Foi o fim da Mitropa, da Taça Latina ou da Dr. Gero e o arranque do Europeu de seleções e das provas europeias de clubes. Mas as limitações ainda estavam lá. Por isso, os primeiros Europeus foram disputados em formato de final four, com fases prévias a duas mãos e uma fase final de quatro jogos com um dos finalistas como anfitrião. E também por isso o plano de Hanot de uma liga europeia, com convidados de elite por países - mais do que um por país, aliás, segundo a sua importância - num modelo de todos contra todos foi trocada por uma mais prática Taça de eliminatórias a duas mãos e final em campo neutro. Menos jogos, menos deslocações, menos ingerência nos calendários nacionais e maior sentimento de excepcionalidade. Agora que a ideia de Hanot está a ponto de recuperar vida, importanta entender que o mundo mudou tanto como tinha mudado entre os anos vinte e cinquenta ou no final do século, os três momentos chave na história do futebol europeu.
No livro Noites Europeias - ainda hoje o único livro generalista de futebol escrito em português com edições em mais de três países - investiguei a fundo não só o que esteve por trás do nascimento da ideia de Hanot e a sua execução como também a revolução de finais dos anos oitenta que se converteu em 1992 na Champions League. E esses dois momentos chave ajudam a explicar muito do que nos espera.
Hanot teve uma ideia brilhante mas de dificil implementação e só quando a recém-criada UEFA - criada apenas por causa da perda de influência europeia num cenário global onde estados asiáticos e africanos aderiam em massa à FIFA - decidiu apadrinhar a ideia, é que o projecto persuadiu alguns clubes a aderir. O Barcelona, a grande força espanhola de então, foi das que recusou originalmente a ideia, preferindo ser um dos padrinhos de uma prova que estava a ser preparada paralelalemte e que entrava mais em consonância com o espirito da época, a Taça das Cidades com Feiras. O peso de clubes históricos deu asas á Taça dos Campeões Europeus mas foi o apoio da UEFA, que assumiu a organização do torneio, que lhe deu prestigio e continuidade. Quando muitos desses clubes pioneiros quiseram roubar á UEFA a primazia da sua competição com a criação de uma Superliga de clubes, encontraram-se com uma organização preparada a ceder, evoluir mas não a abdicar do controlo.
O duelo entre Nápoles e Real Madrid, que hoje se repete, foi o ponto de partida para uma ideia que já tinha sido mencionada nos anos setenta, sem efeito. Silvio Berlusconi, que tinha comprado o AC Milan e se preparava para ganhar o Scudetto dessa época, manifestou publicamente a indignação de ver como o campeão de Itália não passava da primeira ronda porque tinha de se medir a outro dos favoritos, o de Espanha, enquanto equipas do Luxemburgo jogavam contra hungaros ou belgas. O problema do Cavalieri era que ele tinha os direitos de retransmissãoa da prova e essa realidade fazia-lhe perder dinheiro, muito dinheiro. O mesmo que os clubes eliminados perdiam com as receitas de bilheteira - ainda naquele momento a principal fonte de ingressos - e a publicidade estática. Com base nesse propósito, o de criar um ranking com clubes cabeça de série para evitar que os FC Porto, PSV, Steaua, Malmo ou Brugges fossem a finais, nasceu um projecto de Superliga impulsionado pelo AC Milan de Berlusconi, o Bayern Munich e o Real Madrid. Foi encomendado um estudo de mercado aos mesmos homens que, paralelamente, estavam a ajudar os clubes da elite inglesa a rebentar com o seu sistema competititvo para criar uma Superliga - mais tarde rebaptizada como Premier League - e a UEFA viu-se com uma rebelião à porta. Ajudou que a queda do muro de Berlim e o fim do império soviético bem como a aparição da televisão por satélite desse razão aos clubes para que o organismo entendesse que o modelo de 1954 não fazia sentido no mundo de 1991.
Afinal de contas, se tudo mudara porque é que as competições tinham de permanecer iguais?
Essa foi a matriz do nascimento da Champions League, primeiro como prova no modelo de grupos implementado em 1991/92 a modo de teste e a partir do ano seguinte como formato oficial. Mas esses primeiros seis anos foram uma mudança mais de forma do que de fundo. Inicialmente havia ainda fases preliminares, os clubes não podiam utilizar patrocinadores nas camisolas o que lhes fazia perder dinheiro e apenas jogavam os campeões nacionais em formatos que mudavam de ano para ano. Nesse periodo de tempo o que a UEFA fez muito bem foi criar uma marca poderosa, um logotipo e hino que sobrevivem ainda hoje e um pack económico de sponsors premium que deu ao torneio um estatuto especial. Seguiu-se a venda milionária dos direitos e quando os clubes voltaram a reclamar, no final dos anos noventa, a UEFA já estava preparada para o seguinte passo.
Eliminar a Taça das Taças - numa altura em que as taças nacionais tinham perdido quase toda a relevância - e abrir a Champions League a mais do que um clube por país, com uma segunda fase de grupos e mais jogos televisados. O modelo sofreu ajustes e acabou em 2002/03 naquele que conhecemos hoje e com um ranking que teve poucas alterações no número de representantes por paises, com algumas pontuais oscilações como as que vivem países que estão sempre no limite entre um nivel ou outro, caso de Portugal.
Esse modelo está vigente há duas décadas e apesar do novo modelo competitivo oferecer uma revolução na fase de grupos - dois jogos extra sem um grupo definido num modelo virtual de todos contra quase todos em teoria - tudo permanece relativamente igual. Até que o passo seguinte seja dado e esse, como em 1991 e como em 1953 inevitavelmente será demoledor para o mundo que conhecemos mas também mais conectado com o mundo em que vivemos.
A Superliga é tão inevitável como ampliar os Mundiais do histórico modelo de 16 a 32 o foi, como os campeonatos nacionais que começaram com oito ou dez equipas chegaram até vinte em alguns casos. Como os jogos ao sabado e domingo á tarde se espalharam por vários dias e horários e como as camisolas lisas passaram a ser um negócio lucrativo com modelos cada ano vendidos a preço de ouro e com versões alternativas que apontam ao mercado de streetwear. No fundo a Superliga é a evolução de um FIFA com gráficos limitados a um modelo hiper-realista, de um Football Manager com relatos a campos 3D. É a passagem do tempo que nos leva ao presente, um mundo que será dominado pelo AI, em que o futebol aceitou ser negócio há muito tempo sem disfarçar o que no fundo sempre foi, e em que as fidelidades dos adeptos já não são meramente locais ou até nacionais mas ultrapassam fronteiras, aliam-se com figuras individuais e estão muitas vezes mais próximas da virtualidade de um videojogo do que da realidade de uma ida ao estádio.
A diferença do que a ECA e a UEFA preparam para o futuro - a partir de 2028/29, nunca antes - em relação ao que clubes como o Real Madrid queriam, é no fundo a mesma de há trinta anos atrás, uma questão de controlo. O organismo agora presidido por Ceferin sabe que tem de se adaptar aos tempos e que ter três divisões continentais em lugar de três torneios faz sentido a muitos niveis. O que nunca vai estar preparada é para abdicar do papel de piloto do projecto, do regulador que estabelece as regras e distribui os lucros. Essa figura sem a qual o jogo não pode sobreviver.
No fundo quase todas as medidas do plano original da Superliga vão acabar por transformar-se em realidade ao largo da próxima década. Inteligentemente não será tudo imediato da mesma forma que a Champions League demorou quase uma década a passar a ser o que conhecemos hoje, com variações aqui e ali. Mas sucederá. Que o seja pela mão da UEFA dá-lhe congruência histórica e mantém a linha com a inovação de Hanot. Que o modelo utilizado seja muito parecido ao que o jornalista francês idealizou é apenas e só a cereja no topo do bolo. Quase cem anos depois a evolução do mundo deu-lhe a razão.