Os homens que não temem perder o emprego
Portugal passou de ser um país onde até os treinadores campeões são questionados ao primeiro tropeço a ter clubes reféns dos técnicos que os dirigem independentemente dos resultados em campo.
Durante décadas a cultura do futebol português era a do gatilho fácil. Olhava-se com inveja para o modelo dos clubes britânicos onde não só os treinadores tinham um grau de importância superiores - eram uma espécie de técnico e director desportivo fusionados nessa palavra tão imponente de Manager - mas também duravam mais tempo nos cargos. Entendiam esses clubes que o futebol é um desporto competitivo onde há sempre vários cães a um osso e nem sempre se pode ganhar. Mudar por mudar não faz sentido, salvo que essa mudança leve o projecto para o rumo pretendido e, até então, abandonado pelo incumbente no cargo.
Na Europa do Sul - que o problema é longe de ser português - onde imperou um modelo presidencialista, mediático e em que o treinador quase sempre se convertia no elo mais fraco, a visão era oposta. O técnico não só não determinava o rumo do clube - essa competência era do Presidente - como também vivia exclusivamente dependente dos resultados e da harmonia do balneário. Muitos treinadores foram campeões e ainda assim acabaram despedidos porque os clubes - fossem os seus donos, no caso italiano, ou os seus presidentes, no caso ibérico - entendiam que o triunfo tinha sido conseguido apesar do técnico e não graças ao técnico.
Essa distopia provocou não só inveja dessas longas dinastias britânicas - muitas delas descontextualizadas com o passar do tempo - como também abriu o debate sobre quem deve pilotar os destinos de um clube, se os sócios/investidores através da direção, se o técnico. Algumas vezes se tentou aplicar o modelo de manager em Portugal, sempre sem êxito. José Maria Pedroto, por exemplo, tinha já solicitada a Pinto da Costa exercer como tal, delegando a um jovem Artur Jorge as funções de treinador de campo - os célebres coaches ingleses - da mesma forma que Matt Busby dava a Jim Murphy muitas das tarefas do treino e da táctica do histórico Manchester United dos anos cinquenta e sessenta. Murphy que, como excelente treinador que era, não esteve sequer no desastre de Munique porque era igualmente seleccionador galês e tinha acabado de orientar o combinado nacional nesse mesmo dia. Mas a morte prematura do Zé do Boné e outras ideias similares como a de Bobby Robson como Manager de um Barcelona treinado por Van Gaal morreram quase sempre à nascença. Até hoje.
Não deixa de ser curioso que, na mesma altura em que muitos adeptos do Benfica questionem abertamente a continuidade de Roger Schmidt - o primeiro treinador campeão das águias na década - os outros dois crónicos candidatos ao título tenham encontrado figuras que se assemelham cada vez mais à dos Managers clássicos, com um poder que raramente o futebol português viu ser concedido.
Ambas as situações são similares na sua natureza, diferentes na sua forma. No fundo são reflexo da forma presidencialista de gestão do jogo em Portugal mas também do crescente peso do mediatismo e da cultura de pressão social estabelecido em que o modelo de meritocracia foi alterado para uma forma mais passiva de actuar. Até porque se os êxitos do treinador são os meus êxitos e os meus fracassos são ignorados porque o treinador tem êxito, então o melhor que tenho a fazer é manter o treinador e deixar assim de sofrer o inevitável escrutinio das massas. Tanto Varandas como Pinto da Costa pensam da mesma forma ainda que tenham chegada a essa conclusão de forma diferente.
Para o presidente do Sporting, um homem sem passado no dirigismo e que chegou ao poder depois do descalabro de Alcochete e da exoneração de Bruno de Carvalho, Amorim foi, é e promete ser a sua tábua de salvação. Foi uma aposta arriscada - um all-in - que correu bem quando, contra toda a expectativa, o jovem técnico guiou os leões ao seu primeiro título em quase duas décadas. Essa vitória - pela rareza de triunfos e também pela forma como foi obtida - transformou de imediato o técnico numa figura messiânica para os adeptos e a direção do clube, até então fortemente questionada, passou a utilizá-lo a seu favor. Até porque o adepto sportinguista que viveu apenas a alegria de ser campeão em cinco ocasiões desde 1980 sabe que, não raras vezes, os tiros dados pelas direções leoninas após as conquistas de títulos foram responsáveis pelo pobre palmarés de um clube que, até aos anos sessenta, era a primeira força nacional.
Amorim também soube capitalizar a sua dose de popularidade e nem os seguintes anos sem triunfos beliscou sequer o seu prestigio. Não era expectável que continuasse a vencer mas o facto de ser uma força capaz de competir parecia ser suficiene para muitos. O papel activo do técnico em exercicios de mercado cada vez mais certeiros, a forma como tem trabalhado tacticamente jogadores que oferecem verão atrás de verão importantes mais valias, transformou o inexperiente treinador no mais longevo do Sporting moderno. A tal ponto que, a cada possível saída para o apetitoso mercado inglês, se instala um clima de quase paranoia em Alvalade. A começar numa direção que sabe que, sem o guarda-chuva Amorim, voltará a ser vista com os mesmos olhos criticos que o era no período prévio à chegada do técnico.
E esse é o argumento principal da mudança de mentalidade nos clubes de topo em Portugal. Direções que pilotam clubes deficitários, economicamente em problemas e sem grande capacidade para competir contra os tubarões, encontram em figuras populares com os adeptos uma proteção aos seus erros e à sua falta de soluções para o futuro. Afinal é mais fácil ter um rosto popular a falar sobre futebol, mesmo se a equipa não ganha ou joga bem, do que tentar explicar como se vai reduzir um passivo, qual é o plano de crescimento do clube ou o que acontecerá quando o técnico seguinte resulte ser um erro de casting.
Ninguém leva mais a peito esta nova realidade do que o FC Porto.
O clube historicamente mais presidencialista do futebol português não deixou de o ser mas Pinto da Costa decidiu deixar de ser o rosto mais visivel do clube a favor de um técnico que o salvou de presenciar uma humilhação histórica, quando o Benfica caminhava a passos largos para o primeiro Pentacampeonato da sua história. No caso de Pinto da Costa juntam-se duas realidades complementares. Por um lado a situação desastrosa em que tem o clube desde há sennsivelmente uma década, intervenido pelo Financial Fair Play, altamente deficitário nas contas, com uma incapacide atroz de se mover no mercado fora da rede de comissionistas habituais. Por outro lado a sua avançada idade e o desgaste que advém de ser constantemente a voz de um clube que se queixou do Sistema até se converter no próprio Sistema, existindo assim num estado de permanente contradição. Não fosse a inesperada candidatura de André Villas-Boas e o octogenário presidente dos dragões há muito que se tinha recluido ao seu mundo, deixando ao treinador que foi apenas a terceira ou quarta escolha no complexo mercado de 2017/18, ser a voz e o rosto da sua presidência.
Conceição cumpre o papel na perfeição, não só porque se identifica realmente com Pinto da Costa a todos os níveis como é também para os adeptos uma memória permanente dos anos de dominio avassalador, os mesmos que o Presidente quer que estejam presentes na memória dos adeptos quando pensam nele. Se o Conceição jogador foi figura chave no primeiro Tetra do clube - o apogeu do pintocostismo - o treinador transformou-se no messias para os adeptos que temiam ver o eterno rival voltar aos seus anos de hegemonia incontestada. Três titulos em seis épocas completas colocaram-no no topo dos treinadores com mais triunfos nacionais com os Dragões mas até a sua própria longevidade no cargo é sintomática da viragem de Pinto da Costa - um homem que raramente concedeu mais de dois anos a treinadores, mesmo os campeões - para dar carta branca ao seu treinador em todas as facetas do clube. Afinal de contas, em alguns sectores, o presidente sabe que o treinador é uma figura mais popular que ele próprio, realidade que não o assusta mas que valida a sua forma de estar, não surpreendendo até usar a sua renovação como arma eleitoral a seu favor.
O problema, tanto no caso de Amorim - um herói de circunstância - como de Conceição - um salvador in extremis mas com um profundo simbolismo histórico - é que ambos os treinadores assumiram tal dose de popularidade com os adeptos e tornaram-se tão importantes para tapar as misérias das suas direções que a sua continuidade já não está em absoluto relacionada com o que passa em campo.
Schdmit continua a ser julgado pelo o que a sua equipa ganha e joga, algo que muitos treinadores campeões, no Benfica, Sporting e Porto sofreram no passado. Amorim e Conceição não. Nenhuma das direções que deles depende está preparado para os perder como consequência de um título perdido, ou dois. De uma eliminação europeia. De más escolhas no mercado, da não utilização de mais valias ou potencialização da formação. Tudo aquilo que, na prática, rege o destino de qualquer treinador. Conceição tem o discurso de soberba e desrespeito pelos adeptos que criticam o seu modelo de jogo - convidando-os a ir ao teatro - porque sabe que isso nunca será motivo de um eventual despedimento. Nem isso nem a perda de um campeonato ou dois consecutivos. A sua importância para quem manda vale mais. O mesmo cenário tem vivido Amorim, incapaz de voltar a vencer um troféu depois do título nacional conquistado mas ainda hoje figura intocável no universo leonino. As suas equipas têm jogado bem ou mal, algumas das suas opções de mercado funcionaram e outras menos, mas não existem sombra de dúvida de que, passe o que passe, é Amorim quem deixará um dia o Sporting, não será o Sporting a livrar-se de Amorim. O mesmo passa no Porto onde existe, além do mais, uma relação pessoal próxima entre quem manda e quem comanda a equipa e a sensação de poder indiscutivel que é suficiente ambrósia para calar eventuais promessas de outras paragens.
É isto a cultura dos managers que grassa no norte de Europa? Em certa medida sim, é um reflexo de um universo onde as direções nunca quiseram chatear-se demasiado com o dia a dia dos clubes e preferem uma cara amável e simbólica para os adeptos do que estar permanentemente a intervir nos destinos da entidade.
Mas para um país tão presidencialista, esta viragem tem menos de contra-cultura e mais de oportunismo. E gera um problema sério dentro dos próprios clubes, onde os jogadores sabem que, façam o que fizerem, é mais importante cair em graça com o treinador do que dar o seu melhor. E isso aplica-se a toda a estrutura. É aí onde a meritocracia desaparece e a eternização da voz de comando por imposição planta no subsolo as sementes das ervas daninhas do amanhã. Quando alguém sabe que, faça o que fizer, o seu emprego não está em risco, entra numa espiral de acomodamento e desconexão da realidade que é apenas o prelúdio de um temporal sem fim.