O Outono Quente do Patriarca
Em 1980 a derrota numa final da Taça de Portugal escancarou as portas para o chamado Verão Quente. Até ontem o momento socialmente mais importante do FC Porto. Até ontem.
Eram milhares. Onde antes apenas caminhavam dezenas. Durante décadas as Assembleias Gerais do FC Porto, ao contrário daquelas convocadas pelos seus principais rivais – algumas até com direito a transmissão televisiva em sinal aberto – eram o evento social mais aborrecido da cidade. Meia dezena de sócios, às vezes menos até, sentavam-se num espaço pequeno, escuro e quase anónimo de um parque de estacionamento para abanar com a cabeça assertivamente a tudo o que ouviam. Nunca parecia existir grande motivo sequer para estar lá. O clube vencia com regularidade, fazia capas de jornais com vendas extraordinárias, era liderado com pulso de ferro pelo mesmo homem durante mandatos a fio e quando alguma coisa de errado sucedia, culpavam-se os inimigos externos e problema resolvido. Nem sempre foi assim. Houve Assembleias Gerais históricas no clube, desde aquela que motivou o apoio dos sócios a Césario Bonito, quando este foi irradiado por parte da Federação Portuguesa de Futebol – após criticas abertas ao centralismo dominante na época, a próposito do adiamento de um Sporting vs FC Porto para que o internacional Travassos chegasse a tempo de jogar – à noite em que uma manada de sócios furiosos conseguiu a expulsão de José Maria Pedroto de sócio. Nessa noite, alimentados pela direção de Afonso Pinto de Magalhães, os sócios dos dragões conseguiram expulsar do clube a única pessoa que os defendera e mostrarar ter visão de futuro. Demoraram quase uma década a arrepender-se. Quem esteve essa noite no evento foi o actual Presidente e, apesar da idade, seguramente a sua memória se lembra do poder de uma “turba”, como pensaria o vigente Presidente, que a soube usar a seu favor. Esse foi, afinal de contas, um dos grandes ases na manga de Pinto da Costa durante tantos anos, o saber manobrar as multidões. Foi assim nas AG´s durante o periodo em que, com o mesmo Pedroto, reergueu o clube da mais absoluta penumbra moral e desportiva, e também foi assim que, após o Verão Quente que se seguiu ao despedimento do técnico, da sua própria demissão e da greve do plantel profissional, surgisse como o messias que ia salvar o Porto de si próprio. Em 1980 Jorge Nuno Pinto da Costa era, de certa maneira, aquilo que hoje se opõe a ele. A história tem o condão de repetir-se, primeiro como tragédia e logo como tragédia. As palavras de Karl Marx ontem ecoaram sobre o Dragão.
Pinto da Costa foi uma figura intocável durante quatro décadas. Desde a vitória avassaladora em 1982, nunca encontrou verdadeiramente concorrência eleitoral. Na primeira década de presidência soube rodear-se de excelentes ajudantes que foram fundamentais para trabalhar na sombra as ideias visionárias que este tinha para aplicar. Porque se houve algo que foi Pinto da Costa é precisamente isso, um visionário. Mudou para sempre o paradigma da ideia de um Presidente, foi o primeiro homem a entender o poder do marketing, da relação preferencial com agentes desportivos e da necessidade de estabelecer uma linha aberta com homologos em várias ligas por essa Europa fora. Foi também o homem da divisão entre Norte e Sul, das guerras intermináveis do passado e da união de portas a dentro, especialmente quando o que sucedia fora lhe dava argumentos suficientes para isso, fossem os sucessivos apedrejamentos sofridos por atletas e sócios longe da Invicta ou as ameaças de penhoras. Nunca foi um santo, nunca precisou de o ser. Foi Thomas Shelby quando era necessário, foi Winston Churchill quando preciso. Nunca deixou ninguém indiferente. Mas houve algo que não conseguiu nunca: vencer o tempo.
Depois de quatro décadas em que bateu todos os recordes de jogos ganhos, titulos conquistados e memórias pintadas nas paredes e nos sonhos, há largos dias dos seus quase cem anos que a sua liderança evoca mais o final da lenda Arturiana que o fulgor da juventude. Fechado sobre si mesmo e sobre as suas guardas pretorianas, fisicas e emocionais, existe agora num plano diferente do real. Um plano mental e emocional que perpetuam os sussuros ao ouvido e os gritos de apoio nas bancadas. Os únicos que ainda se escutam. Rumores de ventos de mudança chegaram, sim. Talvez o velho guerreiro reconheceu-se entre os tuneis do tempo e percebeu o que uma voz fresca, emocionalmente ligada a uma geraão que nunca o viu em ação de verdade, pode fazer. Teve medo, precipitou-se e abriu a caixa de Pandora. Um erro habitual nos veteranos de mil batalhas que se esquecem que as velhas espadas enferrujadas já nada podem com as novas armas sobre a mesa.
Durante muitos anos houve rumores sobre as AG´s do FC Porto. Ameaças gratuitas de violência, contestatários silenciados, vozes levantadas engolidas num coro de reprovação. Eram rumores. Ninguém realmente estava lá. Nada se via, nada se ouvia, era como a história do bicho papão, útil para assustar os mais ousados. O mito fez-se lenda e ontem, 13 de Novembro, a lenda fez-se real. Num momento histórico para o clube, os rumores passaram a ser verdade e desta vez não foi às escuras, num beco perdido. Havia luzes, havia focos, havia rostos, havia gritos e havia câmaras. Seguramente ao serviço da Capital, dos interesses perversos do Centralismo, dos inimigos do Salvador. Seguramente. Mas, depois de anos os sócios do FC Porto decidiram, em grande número, que serviam para mais do que pagar quotas. Disseram presente. Não houve medo que os barrasse, não houve rumores nem lendas que os fizesse ficar em casa. Tanto que o medo cruzou a porta e transportou-se para aqueles que pareciam mais lucrar com ele até então. Filas intermináveis, pessoas em tuneis à espera de ver como se faz história em vivo. Um líder sábio saberia ler as estrelas e endireitar rumo, cancelar um evento planeado para uma arrecadação com um motivo concreto – o de aprovar uma série de alterações muito beneficiosas para uma das partes interessadas no próximo processo eleitoral – mas a sabedoria há muito que peca por ausente naqueles lados. Transferiu-se o cenário de um espaço minusculo a outro pequeno. Com sócios à porta para entrar outros foram convidados a sair, não da melhor forma. Mas de uma forma que todos foram capazes de ver. Máscaras cairam. Rostos sérios no coração do pavilhão olharam para o mundo sem o entenderem, da mesma forma que os regimes caem, rapidamente e sem se darem conta disso. O silêncio sepulcral dos notáveis demonstrou do lado em que estavam. O grito ensurdecedor dos que queriam impor a lei de Liberty Valance ecoou sobre o edificio. Os sócios viram e perceberam onde estava o real e onde vivia o mito. Muitos caminharam de regresso a casa com uma certeza. O clube podia ser deles no papel mas se o querem de volta, vão ter de arregaçar as mangas. Uma e outra vez.
Em 1980 o Verão Quente teve zero impacto na vida do clube. Pedroto saiu para Guimarães, Oliveira e Gomes partiram para Espanha e o FC Porto iniciou um micro-ciclo de quatro anos sem vencer, dois dos quais já sob a nova presidência. Mas plantou-se uma semente. A Revolução de Abril tinha sido recente mas só chegou ao clube verdadeiramente nesse momento para concretizar-se dois anos mais tarde. Não é casualidade que o período mais glorioso do clube tenha surgido ao cavalgar essa onda de liberdade e positivismo. Agora, cumprindo-se cinquenta anos da Revolução dos Cravos, o FC Porto está de novo numa encruzilhada histórica. Os resultados podem demorar a brotar. Um, dois ou quatro anos. Mas a semente já foi plantada. No subsolo cresce o futuro. Na superficie cruzar-se-ão espadeiradas. Durante muito tempo.
Mas o final desta história já está escrito. Sem se aperceber, o homem que reclamava a gratidão pela obra feita no passado prestou um último serviço importante ao clube. Preparou o seu futuro. Verdadeiramente, o FC Porto nunca saberá estar grato o suficiente ao homem que depois do Verão Quente ajudou acontecer a noite do 13 de Novembro de 2023. É dessa madeira que estão feitas as verdadeiras lendas.