O homem que inventou o 4-3-3
Mário Zagallo é uma das figuras mais influentes da história do futebol. E também das mais bem sucedidas. Um pioneiro a todos os níveis que ajudou a definir uma era de ouro no futebol Brasileiro.
Não há nada mais difícil do que demonstrar quem inventou o quê no mundo do futebol. É um debate estéril e divertido, ao mesmo tempo, porque reflecte a necessidade humana de definir o kilómetro zero de qualquer ideia ou pensamento mas que esquece que, muitas vezes, a evolução é contextual e fruto de casualidades mais do que de planos orquestrados. Esse debate existe com o papel do falso 9, a afirmação do WM como modelo táctico, a criação do conceito do “Futebol Total” ou a invenção do pressing. E também, claro, do momento em que o futebol entendeu que tinha avançados a mais e precisava de uma abordagem mais equilibrada ao jogo. Na Europa essa mudança fez-se do 4-2-4 ao 4-4-2, um desenho táctico que surgiu de forma contemporânea em mundos tão diferentes como a União Soviética e o Reino Unido. Na América do Sul foi apenas um homem retirado da linha da frente para oferecer esse equilibrio dando origem ao 4-3-3. Mas se muitos dizem que a mudança no espectro europeu se deveu ao génio de dois homens que eram técnicos das respectivas equipas - Alf Ramsey no Ipswich e Viktor Maslov no Dinamo Kiev - no Brasil esse invento foi atribuido a um jogador de campo. E foi aí que o mito de Mario Zagallo, o homem com solução para todos os problemas, efectivamente nasceu.
Zagallo não inventou provavelmente o 4-3-3 mas tornou-o extremamente popular, o que equivale quase ao mesmo. Foi precisamente em 1962, quando o Brasil apareceu no Chile para tentar renovar o título conquistado quatro anos antes na Suécia que a metamorfose táctica do “Formiguinha” se fez notar.
No torneio de 1958 os brasileiros jogaram num claro 4-2-4 que utilizava a famosa diagonal, um movimento táctico com quase uma década, criado segundo alguns por Dori Kurschner, um treinador húngaro que emigrou para o Rio de Janeiro nos anos trinta, e que foi aproveitado por Flávio Costa, que tinha servido como seu ajudante e que herdaria a sua equipa semanas depois do seu despedimento. Costa mudar-se-ia depois para o Vasco da Gama onde o seu modelo de jogo se tornaria letal, o célebre “Expresso da Vitória”. Esse modelo de jogo explorava o jogo ofensivo dos dois laterais - Nilton e Djalma Santos - e a inteligência da linha ofensiva, onde Zagallo surgia no lugar do lesionado Pepe, a estrela do ataque do Santos, fazendo companhia a Vavá e Garrincha e Pelé, introduzidos pelo técnico Vicente Feola para o terceiro e decisivo jogo da fase de grupos contra a União Soviética. Zagallo oferecia pela esquerda mais trabalho táctico do que Garrincha no lado oposto e os dois jogadores completavam-se no equilibrio que davam ao conjunto canarinho. Quatro anos depois Garrincha estava numa forma ainda mais estelar mas a lesão de Pelé e a ausência de Altafini ou Vavá - que elevaram Amarildo à condição de protagonista - levaram o extremo esquerdo de 1958 a converter-se num médio mais interior no Chile. Essa mudança já tinha sido ensaiada no Botafogo, clube que Zagallo partilhava com Mané, fruto do trabalho táctico da equipa carioca. O seu técnico era João Saldanha, o jornalista comunista que mais tarde se celebrizaria como o seleccionador despedido em vésperas do Mundial de 70, e ele tinha chegado ao clube para exercer de traductor do húngaro…Dori Kurschner, contratado anos antes.
Com Kurschner o até então jornalista aprendeu tudo sobre a escola danubiana, incluindo a importância do jogo interior e da criação de espaços com a movimentação dos futebolistas das suas posições. Contando com um extremo clássico puro na direita - e provavelmente o melhor do mundo nesse momento - e aquele que foi talvez o lateral esquerdo mais decisivo da história do futebol, Nilton Santos, um jogador que fazia toda a ala da mesma forma que, anos mais tarde, jogadores como Roberto Carlos imitariam, fazia todo o sentido que o extremo posicionado no sector esquerdo procurasse mais terrenos interiores. Zagallo era um futebolista com uma ética de trabalho superlativa, um sentido posicional excelente e uma óptima visão de jogo. O futebolista e a demarcação encaixavam como uma luva e o contexto do “Fogão” e da seleção brasileira fizeram o resto. O modelo ensaiado nos campeonatos estaduais de 1961 e 1962 foi transferido para o conjunto orientado por Aimoré Moreira no Chile. O Brasil foi bicampeão mundial.
A fama de inventor ficou com o próprio da mesma forma que Vasovic, o mítico central do Partizan e Ajax, sempre reclamou para si a ideia do “Futebol Total”. Zagallo sempre foi tão vocativo como o sérvio e a sua fama de egocêntrico fez com que se ajudasse a difundir a ideia de que o 4-3-3 era uma criação sua. Parece evidente que é uma ideia que teria dificil nascimento se não fosse por ele ou por um jogador das suas caracteristicas mas, tal como aconteceu com o 4-4-2, a evolução táctica do 4-2-4 forçosamente estava marcada por um passo inevitável, o reforço da zona medular. A grande diferença que o 4-3-3 trouxe foi o espirito danubiano perdido no 4-4-2 inglês sem extremos que Alf Ramsey desenvolveu e foi baptizado como “Wingless Wonders” ou o modelo de pressing agressivo e vertical da ideia de Maslov, um herdeiro do Passovotchka moscovita de vinte anos atrás. E aí, apesar de Zagallo ter sido a peça final do puzzle, a origem remonta ao mesmo ponto de sempre: o Danubio.
Poucos países podem reclamar ter sido tão influentes na história do jogo como a Hungria. Essa influência solidificou-se até aos anos sessenta, momento exacto em que aqueles que cresceram debaixo das suas ideias tinham já a capacidade suficiente para a elevar a outros patamares. Entre isso e a sovietização da sociedade húngara e, por consequência, do seu futebol, fez com que o papel dos magiares fosse progressivamente substituido pelos holandeses, franceses e portugueses nas décadas seguintes. Mas naquele momento no tempo ainda eram os homens a seguir e sem a chegada de Kurschner ao Brasil talvez a história tivesse sido diferente.
Se Flávio Costa bebeu dele a linha de quatro defesas com o modelo diagonal como base da projeção no ataque - ideia que depois alimentaria o catenaccio de Helenio Herrera com o papel fulcral dos laterais ofensivos - já Saldanha apostou mais na mistura do espirito “malandro” do habilidoso jogador brasileiro com a cultura da ocupação do espaço. O 4-2-4 que implementou no Botafogo era imagem de marca de uma equipa extremamente ofensiva e que não ficava atrás de nenhuma outra, nem mesmo do todo poderoso Santos, em espectáculo. O que o “Fogão” tinha, em comparação, era um equilibrio táctico oferecido pelo papel de Zagallo, algo que Pepe e Canhoteiro - os homens avançados mais à esquerda de Santos e São Paulo - não podiam dar. Por isso Mario Zagallo se revelou a figura central da revolução, tanto na seleção como no clube. E se em 1958 o jogo do Brasil ainda vivia muito do trabalho de Nilton na ala e de Didi a pensar o jogo desde o miolo, sempre com o apoio cerebral de Zito, abrindo espaço para a magia de Vavá, Pelé e Garrincha no ataque, já em 1962, com uma geração envelhecida e um Pelé fora de combate bem cedo, o extremo demonstrou a sua valia. Talvez se Pelé tivesse estado apto durante toda a prova a importância fulcral do papel de Zagallo tivesse sido diminuida, como fora quatro anos antes.
Afinal de contas, quando o próprio assumiu o papel de seleccionador, em vésperas do Mundial de 1970 e decidiu replicar o modelo que lhe tinha dado fama, o génio e dimensão do homem que escolheu para fazer dele mesmo, Rivelino, foi ofuscado pelo torneio sobrenatural do “Rei” Pelé. E isso ajuda a entender como às vezes o talento individual de um ou vários jogadores esconde importantes nuances tácticas. Esse Brasil de 70, o célebre Brasil sem extremos e avançados com cinco camisolas dez a jogar à frente de Clodoaldo (Gerson, Rivelino, Tostão, Pelé e Jairzinho), era um hibrido táctico que tanto recordava o 4-2-4 de 1958 como o 4-3-3 de 1962 e até lançava no ar aquilo que mais tarde seria o 4-2-3-1 ou até mesmo o 4-6-0 que Guardiola utilizou na final do Mundial de Clubes contra o Santos. Mas isso era mais pelo génio dos jogadores do que pela genialidade táctica de Zagallo.
O homem que tinha dado o passo em frente para uma revolução que adoptaria outra identidade com o passar dos anos nunca foi um treinador sobrenatural ou um inovador. Zagallo era, aliás, um homem e um técnico extremamente conservador, um amigo do poder e do dinheiro, algo que o levou a aceitar a oferta do Kuwait em 1976 - quando podia ter dirigido qualquer clube do Brasileirão - e que o fez pertencer aos diferentes comités técnicos da seleção brasileira, seja como coordenador, como foi em 1994 ou 2002, ou até como seleccionador principal, que ficará para sempre marcado pela decisão de utilizar Ronaldo na final do França 98, um torneio onde um Brasil repleto de génios criativos deu sempre a sensação de jogar com o travão de mão posto, um exemplo perfeito do pensamento de Zagallo.
Mas apesar do seu ar e intelecto conservador, Zagallo soube ler a mudança dos tempos. O 4-3-3 europeu nasceria da retirada de um avançado para o meio-campo, quase sempre o jogador mais criativo da linha atacante, de tal forma que foi sob essa matriz de pensamento que nasceu em Espanha o 4-2-4-1 quando na Alemanha e Holanda já há muito se jogava num 4-3-3 com dois médios atrás de uma figura mais livre. Na América do Sul o processo seguiu o modelo Zagalliano, sempre deixando cair um extremo para zonas interiores porque a amplitude que davam os laterais sul-americanos era bem diferente daquela que proporcionavam os europeus, mais amigos do jogo interior.
Kurschner, Saldanha, Zagallo foram todos mentores de uma ideia que, como todas as ideias, foi ganhando identidade própria a cada passo que dava até se fazer realidade. Mas foi sobre o corpo franzino e os pés inteligentes de Zagallo que a teoria se fez prática aos olhos do mundo. E às vezes é só mesmo isso que basta. E também por isso é justo que se despeça agora um dos homens mais influentes do futebol moderno com a recordação de ter sido um dos pais de um dos modelos tácticos mais populares ainda hoje.