O destino inevitável do futebol moderno
O Tribunal Europeu decidiu hoje, como era expectável, a favor da Superliga, a quem a UEFA tinha negado sequer o direito a existir. O novo modelo na provas continentais - e mundiais - é inevitável.
Não se luta contra os elementos. Adapta-se.
Nas praias as árvores que triunfam são as palmeiras porque são as únicas que sobrevivem aos ventos fortes vindos do mar, dobrando-se ligeiramente mas mantendo-se firmes, agarradas ao solo. Os mais poderosos e imensos carvalhos, por exemplo, são arrancados por ventos tropicais sem opção, a sua força não vem acompanhada da flexibilidade necessária para sobreviver naquele contexto. É assim na natureza e é assim com a vida. A história do futebol é apenas um de muitos exemplos.
Os torneios regionais pareciam intocáveis até aos anos cinquenta e por muito que hoje as pessoas se riam, a importância das Mitropas ou Taças Latinas era estratosférica, da mesma forma que até a essa altura, em Portugal - mas também na Alemanha e como, de certa forma, ainda foi passando no Brasil até há uns anos - os torneios distritais/estaduais eram a salsa do futebol, do seu localismo e da proximidade entre as rivalidades de adeptos e jogadores. Os anos cinquenta trouxeram prosperidade económica, competições nacionais reforçadas e o sonho de provas de expressão continental, um sonho que remontava até aos anos cinquenta mas que a logistica e a carteira sempre tinha impedido. O formato inicialmente escolhido? Uma Superliga entre os melhores da Europa, não necessariamente sequer com um representante por país. O problema encontrado? A mesma logistica, ainda incipiente no transporte aéreo, e a resistência feroz das federações locais a perderem relevância para um novo “monstro”. Soa de algo?
O mundo mudou e mudará sempre.
Hoje os netos daqueles que celebravam um torneio regional mais do que uma liga nacional riem-se e batem no peio a importância do futebol manter o seu espirito “romântico”, esquecendo-se que já no século XIX havia um fortíssimo movimento popular “against modern football”. As provas nacionais de hoje são os distritais dos anos trinta, históricos, armazéns de rivalidades e tribalismo, mas economicamente deficitárias e demasiado pequenos para um mundo ligado por fios invisíveis e que permite a qualquer pessoa em Braga ver, ao mesmo tempo, tudo o que se passa no globo. Convençam essa pessoa que por amor ao “romântismo” de uma geração, um Vizela vs Portimonense é mais interessante para a sua vida de amante do jogo do que um Newcastle vs Aston Villa. Eu espero.
Inevitavelmente esse debate tinha de trasladar-se ao universo das provas continentais - um debate que rapidamente será Mundial porque a FIFA abriu a porta ao último modelo que faltava por explorar, o Mundial, e que começara nos moldes habituais mas que, ,tarde ou cedo, seguirá a mesma via evolutiva - e não é a primeira vez. A Champions League em 2024 não tem nada a ver com a Taça dos Campeões Europeus - e quem ache que quem ganhou uma e outra ganhou o mesmo torneio peca de realista - da mesma forma que a edição de 2023/24 já não tem nada aa ver com a de 1993/94, por exemplo. Quando a ameaça da Superliga reapareceu, em 1989, a UEFA não teve problemas em deitar fora um torneio que era a sua própria base existencial para agradar os Berlusconi, Mendoza e Hoenesses da vida e criar assim a Champions League. Quando o terceiro movimento da Superliga reapareceu, ampliaram-se os participantes por países - expandiu-se até uma segunda fase de grupos para gerar mais dinheiro da televisão - a ponto que, de campeões, o torneio passou a ter pouco. Sempre que os clubes gritavam por mais dinheiro e poder, a UEFA sabia conceder a dose certa para os manter calmos. Mas isso era numa era em que, de uma forma ou outra, os clubes tinham alguma saúde financeira, os jogadores não tinham rebentado o mercado com os seus salários estratosféricos e o futebol ainda não era totalmente visto como o negócio que é hoje.
O grande debate à volta da enésima recriação da Superliga arrancou com base em duas premissas. A primeira foi a atitude de confronto directo que Florentino Perez, Gianni Agnelli e os seus sequazes tiveram desde o primeiro momento, mostrando que de história do futebol sabem muito pouco. Esse nós somos os bons e eles são os maus foi um tiro que saiu pela culatra, especialmente quando todo o processo foi tratado com um amateurismo atroz a nivel de comunicação quando estamos em 2024 e tudo o que não caiba num video de TikTok perde relevância ao momento. O segundo foi a inesperada e mal calculada resistência do público inglês. Porque a Superliga, em realidade, já existe e nasceu com a Premier League - um projecto que é o fruto de uma abordagem similar mas a nível insular - e cresceu com o investimento bestial de russos, americanos e árabes. Sem os clubes ingleses não há um torneio que sobreviva - algo que até Hanot e Ferran conseguiram contornar em 1954 - e aí os adeptos ainda têm uma pequena palavra a dizer. Mas nem eles serão totalmente capazes de mudar o futuro.
A sentença do Tribunal Europeu só quer dizer duas coisas. Uma, que, como esperado, a União Europeia nunca ia negar o direito a existir a um torneio paralelo, especialmente com a sua política contra os monopólios posta em prática durante anos em vários sectores. Isso abre a porta a vários cenários como o basket, o golfe e outros desportos já viveram, deixando pistas importantes do que poderá acontecer, seja um torneio totalmente à margem durante uns anos de confronto até uma paz inevitável seja um modelo menos ambicioso no inicio e que cresca por si só. E claro, o financiamento desses movimentos será igualmente importante, como o dinheiro árabe demonstrou no mundo do golfe - esvaziando o PGA de alguns dos maiores atletas actuais - mas Pique e os seus acólitos não conseguiram fazer no universo do ténis. O certo é que, de uma maneira ou de outra, o monopólio da UEFA - e da FIFA - acaba hoje e isso significa que a arrogância das federações nacionais também. O que é válido à escala comunitária será também a nível nacional e se um fundo saudita entrar em Itália e quiser organizar um campeonato nacional de dez equipas de topo será dificil agora alguém impedir isso mesmo. A história da forma como o futebol se tem organizado desde o século XIX, de certa maneira, morreu hoje.
Outra, que UEFA e o movimento da Superliga estão condenados a entenderem-se, como o fizeram sempre. Mesmo que se tenham traçado trincheiras fundas, um reflexo da cultura do ódio e do nós vs eles dos días que correm em tudo. O modelo da nova Champions já tem traços de uma “Superliga” e deverá ser apenas a porta de entrada a novas mudanças que acontecerão durante a década em que os clubes terão mais dinheiro, mais poder e, seguramente, mais vagas ainda. As Ligas nacionais perderão influência - menos clubes por liga, menos competições paralelas - e os clubes acabarão por contar com planteis mais vastos para poder competir em duas provas ao mesmo tempo (se as quiserem ganhar, que nem todos poderão, como já passa).
No fundo, tudo funcionará como a natureza sempre previu, um exercicio de permanente adaptação ao meio. O adepto de 15 anos de 2024 não tem os mesmos valores que um adepto de 45 que já não tinha os mesmos valores em 1994 quando a Taça dos Campeões Europeus deu lugar a um excitante novo torneio. E aquele de 45 anos então ainda se lembrava seguramente da Taça Latina de quatro décadas antes com nostalgia. Esse caminho não leva a nenhum lado e fica para os livros de histórias e os albums de memórias. O futebol há muito que seguiu o caminho do dinheiro e da necessidade de se retro alimentar e só um modelo como o da Superliga permitirá isso. Muitos não vão sobreviver mas quem se lembra hoje dos triunfos do Rapid de Viena ou do Bologna ou das campanhas do Académico do Porto ou do Atlético de Alcântara nos distritais dos anos quarenta?