Mundial 2030, um triunfo na sombra
Portugal, juntamente com Espanha e Marrocos, vai co-organizar o Mundial de 2030 mas perdeu o simbólico jogo de abertura porque a FIFA fez de tudo para abrir caminho ao triunfo da Arábia Saudita 34.
Longe vão os anos em que as organizações dos grandes torneios eram alvo de largas disputas, quase diplomáticas, que nos trouxeram episódios como o da Itália 90 frente aos soviéticos, a guerra entre alemães e ingleses em 2006 ou as manobras de influência de russos e qatarís nas últimas edições. Essas lutas de poder nas sombras moviam muitos interesses além do futebol mas obedeciam a certas regras, códigos. Havia a rotação de continentes, que a FIFA abriu e bem em 2002 a espaços fora da Europa e Américas, e que descartou quando percebeu que economicamente não era rentável. Estava o alinhamento rival entre confederações e até o peso das grandes marcas desportivas e as potências politicas que explicam que, só neste século, Estados Unidos, Rússia e Japão, bem como uma potência económica do Médio Oriente, tenham um Mundial cada, enquanto que velhas nações europeias que eram consideradas como organizadores de prestigio (Itália, França, Inglaterra…) estejam sempre fora da corrida.
Havia portanto imensa expectativa com a luta de bastidores entre Europa e América do Sul para a edição de 2030. Depois de dois ciclos em potências económicas, mais do que desportivas, e sem praticamente pisar a Europa desde 2006 (a Rússia é sempre esse estado hibrido), parecia ser o momento perfeito para uma candidatura ibérica que juntava o país que melhores condições tem para organizar o torneio das velhas nações europeias e que desde 1982 espera de novo pelo seu momento com uma nação que se tornou altamente popular neste século e já provou ter sabido dar forma a uma competição de elite, em 2004. Mas do outro lado estava não só o simbolismo de 1930 e o ano do Centenário mas o facto de que a América do Sul só ter dois torneios organizados desde 1962, o da Argentina em 1978 e o do Brasil em 2014, manifestamente pouco para a sua relevância histórica.
Esse facto dava força á quadruple candidatura do Cone Sul, entre chilenos, paraguaios, argentinos e uruguaios. Que a UEFA e a CONMBOL tenham excelentes relações, fomentadas essencialmente nos últimos anos, só trazia pimenta à coisa, e muitos imaginavam que a nação perdedora fosse a favorita para organizar o torneio seguinte, em 2034, respeitando a rotação continental. Mas isso para a FIFA era o maior dos problemas porque, entretanto, depois do espectáculo triste mas altamente rentável do Qatar, outro poder aparecia na sombra a querer a sua fatia de glória.
Gianni Infantino é um João Havelange moderno em tudo, incluindo na capacidade de conseguir que todos se sintam felizes com as suas decisões. Havelange foi o homem que conseguiu levar o Mundial de 1986 da Colombia para o México, utilizando até o Brasil como isca para subir o preço, e provocando assim a derrota da candidatura norte-americana, para depois oferecer-lhes de bandeja a edição de 1994. O seu sucessor, Sepp Blatter, fez o mesmo com os sul-africanos, derrotados em 2006 pela Alemanha e vencedores da edição seguinte. Mas se houvesse agora um derrotado nessa corrida a dois, Infantino não podia oferecer-lhes aquilo que já tinha prometido, em segredo, a outros.
Desde a entrada em força do fundo de investimento controlado pela familia real saudi, todos sabiam que o objectivo definitivo era a organização do Mundial de 2034, emulando o conseguido pelos qataris no ano passado, a lição definitiva de sportwash. Nada no plano saudita foi feito por acaso, criando desde já condições para colocar o país no mapa futebolistico e aparecer em 2034 como uma nação a ter em conta depois de uma década com um investimento permanente nos jogadores atraídos, nas instalações e na evolução do desporto a nível nacional. Os sauditas não querem apenas organizar, querem competir e essa margem de uma década dá-lhes tempo para se prepararem em condições. Mas 2038 seria já demasiado no futuro, mais sendo conscientes que o petróleo acabará mais cedo que tarde e ninguém sabe se os seus multiplos investimentos nas grandes economias globais não possam ser alvo de uma recessão futura. Só que 2034 estava, em teoria, prometido em parte por tradição em parte por peso institucional, ao derrotado da candidatura ao Mundial de 2030. Infantino tinha uma pedra no sapato até porque ambas as candidaturas prometeram apoiar a perdedora no ciclo eleitoral seguinte, o que colocava os sauditas num cenário complicado e sem os apoios suficientes para vencer. Foi então que a FIFA foi mais FIFA do que nunca e preparou um plano. Aproveitando que a candidatura ibérica, desesperada por vencer, já tinha dado o passo de incluir Marrocos (garantindo os votos da CAF) e até, temporariamente, da Ucrânia, para conseguir o apoio da CONCACAF via Estados Unidos, Infantino praticou aquilo que se chama um flip mortal completo no mundo da ginástica e apareceu com uma decisão salomónica. Para que dividir quando o objectivo do futebol é unir, diz agora. Os europeus, mais poderosos e com mais apoios, terão o seu Mundial e deixarão de chatear a FIFA até, pelo menos, 2046. Os africanos, que há muito reclamam um sucessor ao torneio solitário organizado em 2010, recebem uma dúzia de jogos e celebram ser parte da festa, especialmente porque Marrocos é dos países com mais candidaturas derrotadas da história do torneio. E os sul-americanos, que a nivel politico têm cada vez menos relevância, podem celebrar o centenário abrindo a competição com três jogos - que eventualmente até poderão passar por ser mais, estando em discussão que a fase de grupos de Uruguai, Argentina e Paraguai se dispute toda na zona inclusive. O grosso do torneio será em solo europeu, Portugal deixará de ter qualquer relevância na candidatura ao perder o importante jogo de abertura no estádio da Luz, que passa ao Centeneario de Montevideu e Espanha celebrará a sua final em Madrid, no renovado Santiago Bernabeu.
Tudo isto reune seis países, três continentes, viagens intercontinentais que deixam uma pegada ecológica dramática e que em nada tem a ver com o caminho que o mundo está e tem de tomar em relação á sustentabilidade ambiental e deixam felizes a adeptos de geografias muito diferentes que há muito reclamavam ser parte da festa dos Mundiais. Mas, sobretudo, satisfaz os sauditas.
Nem segundos demorou a FIFA a confirmar que a candidatura a 2034, em função da união sul-americana, africana e europeia, abria a vaga exclusivamente para países asiáticos e da Oceânia. Na prática há apenas três nomes sobre a mesa, uma candidatura australiana e neo-zelandesa, há muito falada e de dificil execução, ou um duelo entre sauditas e chineses. Tendo em conta que um minuto depois do anuncio oficial da FIFA já a candidatura saudita era anunciada oficialmente nas contas da federação nacional, parece deixar claro quem parte na pole-position. A China poderá ter uma palavra - até porque desde 2002 que é um dos objectivos do Partido Comunista chinês e falhar 2034 é olhar para um futuro Mundial apenas em 2046 ou 2050 - mas tudo indica que será a dinastia petrolifera que abanou o futebol mundial nos últimos meses quem celebrará o evento. Será o terceiro em trinta e dois anos em território asiático, o mesmo número de edições que a Europa e duas mais que cada uma das Américas ou África, deixando claro que o poder económico do Oriente pauta em grande medida as decisões tomadas pela FIFA de Blatter, primeiro, e Infantino depois.
O financiamento do futebol europeu por parte dos sauditas deve ser suficiente para garantir os votos do bloco UEFA-CONMBOL, dificultando a tarefa a um possivel candidato alternativo, e fecha assim o ciclo que começou quando a UEFA abandonou a política de um país, um torneio. Desde então já houve co-organizações (Japão e Coreia), organizações continentais (EUA, México e Canada em 2026) e até triple-continentais como veremos em 2030. Com um torneio exclusivamente na Arábia a FIFA pode até reclamar voltar ao espirito tradicional, vender o torneio como uma celebração do mundo árabe, das mulheres, dos trabalhadores com plenos direitos, das minorias étnicas, religiosas e sexuais e, quem sabe, até dos dissidentes políticos. O torneio será de todos, até porque, já se sabe, 2030 sera a edição do Meio Ambiente, da colaboração entre os povos e do espirito de celebração centenarial, que nunca falte uma hashtag a uma ideia.
Para Portugal fica uma sensação mixta e agridoce. Por um lado é um momento icónico para um país quem, em solitário, jamais poderia organizar um torneio destas caracteristicas até porque nunca ninguém encontrou petroleo no Alentejo, apesar de que por lá também se exploram trabalhadores migrantes, e assim será parte de uma marca que tem um poder especial na mente dos adeptos. Mas o seu papel, que já seria normalmente reduzido face ao imponente vizinho espanhol, é agora diminuido ainda mais não só pela presença de Marrocos mas também pela da América do Sul.
Apenas três estádios - Luz, Alvalade e Dragão - receberão jogos e pela dimensão e caracteristicas de ambos só na Luz se pode imaginar uma eventual meia-final e um jogo dos quartos-de-final, ficando os outros dois reduzidos a jogos da mega fase de grupos de 48 nações (ou mais, quem sabe) e eventuais duelos dos oitavos-de-final. Isso significa que Portugal poderá jogar grande parte do torneio em casa, e isso até poder ajudar a uma seleção que, em 2030, tem todas as condições para sentir-se favorita se olhamos para os nomes que poderão ser convocados pelo seleccionador de então, e pode aproveitar o fato casa para fazer história. Mas haverá talvez o Mundial de Clubes em 2029, e com ele também mais turismo, haverá exposição mediática e pode ser que tudo isto faça com que as grandes obras públicas ferroviárias e o tão falado aeroporto de Lisboa tenham o OK que esperavam com o pretexto perfeito.
O que fica a faltar é a sensação real de que será um Mundial como o conhecemos. Provavelmente não mas o problema é que esse tipo de torneio já não existe. A FIFA é uma organização pioneira em explorar o oportunismo politico e económico mas não está tão desfasada do tempo como podemos imaginar. A ideia original de um Mundial (ou um Europeu, e a UEFA antecipou a co-organização em 2000 e o torneio sem sede fixa em 20220) ser num só país para servir de mecanismo de exaltação nacional e dinamismo económico carece de validez numa sociedade globalizada. Já há vagas suficientes para que distintos anfitriões tenham passagem directa (algo impossível até à expansão a 32 países) e as condições de transporte mudaram, como para reter 32 ou 48 seleções num só espaço fisico geográfico concreto. Os adeptos de hoje, que serão os de amanhã, já não se preocupam tanto com os códigos do passado como para não aceitarem que um torneio possa ser dividido entre europeus e africanos separados por um pequeno estreito. Os jogadores, que já em 2026 vão cruzar um continente entre o México e o Canadá, há muito que assumiram as viagens transatlanticas como parte da sua rotina e por muitas caixas nas sobrecargas de jogos, nunca ouvimos um só futebolista de elite propor receber menos para jogar menos também.
E sim, o Mundial será jogado em diferentes fusos horários, continentes e até estações, mas se hoje em dia grande parte da população já vê o futebol à distância de um click ou um canal de televisão ou twitch, quem somos nós para questionar que sociedade vamos ter em 2030. Para um adepto que cresceu no século XX nada disto faz sentido nenhum mas o futuro não se faz para quem se agarra à nostalgia e aos valores do passado. Talvez 2030 seja mesmo uma grande festa para todos - menos para o castigado meio-ambiente - e valha a pena. Quem vai sair de certeza a ganhar é precisamente quem nem sequer faz parte destas contas. O império saudita voltou a marcar um golo sem sequer ter apertado as chuteiras.