Bobby Charlton, a eternidade em três vidas
Não foi o melhor dos Busby Babes nem o da Holy Trinit mas a sua história é talvez uma das mais fascinantes entre as que o futebol nos deu. Charlton foi eterno em mais de uma ocasião.
Sobreviveu a Munique e ganhou aí a eternidade inesperada de ter uma segunda oportunidade. Guiou a Inglaterra ao seu único título mundial e com isso ganhou a eternidade do simbolo de uma nação. Foi decisivo no culminar no sonho alimentado por Matt Busby e com isso fez-se eterno no coração dos adeptos do Manchester United. Poucos homens podem reinventar-se tantas vezes e assumir um papel tão central em narrativas tão diferentes sendo apenas eles próprios. Robert Charlton foi um desses homens.
Foi um jogador do seu tempo. Um futebolista total antes da palavra estar na moda porque havia muitos como ele por muito que os escassos arquivos e a mitologia da linguagem moderna nos queiram fazer pensar que não. A sua inspiração directa era Duncan Edwards, outro jogador todo o terreno que deveria ter sido o homem a vencer tudo o que Charlton venceu mas que as sequelas do terrivel desastre de Munique lhe custaram a vida num hospital de Munique, dias depois do acidente. Edwards era tudo. Atacante, extremo, criativo, goleador e passador e foi à sua imagem e semelhança que Charlton se reinventou, ele que, naquele momento, era um avançado promissor mas irregular a quem Busby começava a dar espaço no seu ambicioso projecto de criar o primeiro campeão europeu britânico. Mas Charlton foi também a versão insular mais próxima que houve de Di Stefano. E também de Eusébio ou de Rivera. Era um futebolista que unia o faro goleador, apurado por um excelente remate de meia distância, a uma superlativa visão de jogo que faziam dele o nove e meio que o argentino e o português foram antes que viesse Johan Cruyff para fazer disso lenda.
Era por isso que para Charlton jogar bem era importante que a equipa se movesse ao ritmo que ele dictava numa posição que nem o WM nem o 424 de finais dos anos cinquenta entendiam demasiado bem. Essa liberdade chegou com Alf Ramsey, mais do que com Matt Busby, os dois homens chave da sua carreira. Com o técnico do Man Utd, Charlton foi sempre, sobretudo, um segundo avançado, o homem que gravitava atrás do jogador mais posicional - como era Taylor na etapa dos malogrados Babes e como seria Dennis Law na consagrada Holy Trinity. Se o talento inato de Best foi algo que Charlton nunca possuiu - da mesma forma que Di Stefano nunca seria Puskas ou Kubala - a sua leitura de jogo permitiu-lhe sempre encontrar a melhor forma de potenciar o faro goleador do escocês e a capacidade de surpreender do norte-irlandês. Sem o genial inglês a alimentar a equipa talvez aquele Manchester nunca tivesse sido capaz de ser a grande força do futebol inglês dos anos sessenta, coroada com aquele titulo conquistado em Wembley frente ao Benfica, a primeira vez que uma equipa inglesa se consagrava campeã da Europa.
Mas o Charlton de Ramsey era outro jogador e isso viu-se sobretudo nos dois Mundiais que disputou, de forma superlativa. Com o “Wingless Wonders” inventado pelo antigo treinador do Ipswich, todo o ónus criativo recaía sobre o sobrevivente de Munique. Os dois avançados eram jogadores mais móveis, os dois apoios na medular eram todos-terrenos mas a centralidade do jogo ofensivo estava nos seus pés. Charlton assistia, Charlton rematava, Charlton marcava diferenças. Foi assim contra Portugal nas meias-finais do Mundial de 1966 e foi assim contra a Alemanha, tanto na final de Wembley dias depois como no jogo de quartos-de-final de 1970. Foi aliás no momento em que Ramsey o tirou de campo, pensando que o jogo estava controlado e que o calor asfixiante de León ia pesar em excesso no jogador para o duelo das meias-finais, que os germânicos ganharam o jogo. Beckenbauer, até então anulado por completo por Charlton, ganhou vida própria e liderou a reviravolta dos alemães, mudando talvez a história do futebol, já que muitos antecipavam uma final entre ingleses e brasileiros e acabaram por viver o “Jogo do Século”, primeiro, e a goleada canarinha aos italianos mais tarde.
Mas Charlton, o homem que guiou a Inglaterra a um Mundial e o Manchester United a um título europeu - entre vários troféus nacionais - nunca foi o mais talentoso dos jogadores das suas equipas, da mesma forma que, olhando para os Busby Babes que morreram em Munique, seria fácil pensar que o seu lugar na história teria sido bem mais comedido não tivesse o desastre sucedido. Ao mesmo tempo, Robert nunca foi um líder, não como era o seu irmão, Jackie, ou outros idolos do futebol inglês como Bobby Moore, Brian Robson ou Tom Finney. Homem calado, reservado, extremamente conservador, o que ele era na essência era um abnegado, um homem entregue ao sacrificio. Muitos resumiam essa natureza ao ter-se sempre sentido culpado por sobreviver a Munique. O peso dessa herança notou-se, sobretudo, quando Busby desligou após o triunfo continental e o clube entrou numa espiral destrutiva. Best, já na altura um adolescente com problemas emocionais evidentes, procurou nele uma figura paternal para segurar o navio mas Charlton limitou-se a ver o clube cair no poço, sem nunca ter sido aquela figura bigger than life capaz de o resgatar. Tinha sobrevivido a um dos mais dramáticos acidentes de sempre e isso já parecia êxito suficiente para uma só vida.
Talvez por nunca ter sido acompanhado dessa aura, seja fácil descartar Charlton na galeria dos grandes. Falando do Manchester United, sempre lhe faltou essa alma que marcou outros nomes nucleares na história do clube, como Eric Cantona, David Beckham - cujo pai era tão fanático por Charlton que colocou o nome de Robert ao filho - ou o próprio Cristiano Ronaldo. O seu papel na seleção inglesa nunca foi devidamente enaltecido, até porque a foto do troféu era de Moore e os golos na final eram de Hurst. E havia a sombra de Edwards e o fantasma de Best a acompanhá-lo. O certo é que dificilmente houve um futebolista inglês tão completo e decisivo quanto ele, capaz de ler o jogo e decidir em momentos chave, com tanta regularidade. Inglaterra produz quase sempre jogadores de grande alma e atitude com talentos particulares, seja na finta (Mathews, Hoddle) no passe (Scholes, Beckham, Gascoigne), na raça (Robson, Rooney, Finney, Ball, Keegan) ou no golo (Shearer, Owen, Kane, Lineker, Greaves). Mas nunca tiveram, antes ou depois, um perfil tão completo como o jogador do Northeast que se fez homem no Lancashire. As suas motivações políticas, a sua eterna relação com um clube que gera tanto amor como ódio e a sua persona silenciosa e quase anónima, retiraram durante décadas o foco que a sua carreia merecia. No final, o que sobreviverá é o futebol. E dentro das quatro linhas Robert Charlton foi o rei que o futebol inglês nunca mais voltará a ter.