A Galáxia Beckenbauer
Foi o homem que revolucionou a posição de líbero depois de ter sido um dos médios ofensivos mais influentes de sempre. Revolucionário, pioneiro, plástico e inimitável, Franz Beckenbauer foi tudo.
Franz Beckenbauer não era um futebolista. Era uma galáxia.
Nenhum outro futebolista da história provou ser tão eficiente e decisivo em zonas tão distantes do terreno durante tanto tempo. No futebol há dois momentos que definem o jogo, o atacante e o defensivo. Os maiores futebolistas da história, aqueles que metemos sempre no top 10 de forma praticamente consensual, são todos homens de ataque. Goleadores, regateadores, artistas donos do espaço e do tempo. Mas há um homem que, sendo tudo isso, também foi um mestre na arte de defender. Tanto que a elevou de obra de plateia a galeria de museu. E isso foi algo que só ele foi capaz de fazer em toda a história do jogo, o que é dizer muito.
Beckenbauer nasceu com alma de avançado e aí passou largos anos da sua etapa formativa, a tal que começou num modesto clube de bairro de Munique e que aos 14 anos esteve a ponto de ter terminado com as cores azuis celestes do 1860 não tivesse um inoportuno estalo de um jovem presunçoso o atirado para o vermelho flamejante de um até então quase obscuro Bayern. Um clube que tinha vivido o seu curto momento de glória a inicio dos anos trinta antes que a sua política de conciliação com a comunidade judia, da qual provinha o seu presidente Kurt Landauer, o tivesse levado a cair em desgraça com as autoridades nazis e o levado quase à falência. Muito se escreveu sobre como Beckenbauer, ao acabar por optar por jogar pelo Bayern levando com ele vários amigos do futebol de rua de Munique como Gerd Muller, Sepp Maier ou Gregor Schwarzenbeck, refundou o clube. Talvez o tivesse feito. Mas esse Beckenbauer a quem chamavam de Kaiser mais pelas similiaritudes físicas com Luis II da Baviera do que pela sua aura de líder que alimentaria com especial afinco, era nesses anos mais um avançado do que um jogador de futebol. Foi o influente e regularmente esquecido Zlatko Cajkovski que percebeu que esse franzino e elegante avançado era demasiado pulido para ser avançado mas funcionava como uma luva como médio num meio-campo a dois, agora que o 4-2-4 era moda depois do êxito brasileiro no Mundial de 1958. Como aquele Didi ou o mítico Coluna, também Beckenbauer recuou uns metros para assumir a liderança da equipa de uma posição medular e foi aí onde passou sensivelmente os seguintes sete anos da sua carreira na elite. Um jogador de ataque, demolidor em transições, com uma técnica irrepreensível e uma óptima capacidade para ler o jogo. Foi esse o Beckenbauer que levou o Bayern não só à Bundesliga como aos primeiros troféus e também o que se afirmou como líder da Mannschafft durante a campanha do Mundial de 1966 - onde foi decisivo nesse papel contra a medular soviética nas meias-finais - de tal forma que Alf Ramsey decidiu que merecia uma marcação especial no dia da grande final. O homem escolhido para a tarefa era outro avançado reconvertido a posições mais centrais, o genial Bobby Charlton. O inglês venceu o duelo em 1966 e praticamente repetiu a dose quatro anos depois. Quando saiu do terreno de jogo, sem uma sombra a tê-lo atado, Beckenbauer voltou a demonstrar o quão influente podia ser e abriu caminho para uma reviravolta dessas que marcam gerações. Acabou esse torneio sem prémio e com um braço ao ombro num dos jogos de todos os tempos. E acabou por perceber que o seu futuro estava noutro lado.
Tinha chegado o vento de mudança ao futebol da Europa ocidental e soprava especialmente forte desde terras holandesas. A alteração táctica promovida por Ernest Happel e Rinus Michels, a mudança do ritmo de jogo, a pressão intensa na medular e a verticalização do jogo transformou futebolistas elegantes - poucos jogadores passaram a bola tão bem ou usaram o exterior do pé com tanta elegância como o Kaiser - em figuras prescindiveis na elite. Nenhum jogo demonstrou melhor essa realidade do que a goleada aplicada pelo Ajax ao Bayern a caminho da sua terceira Taça dos Campeões Europeus consecutiva. Um jogo onde Beckenbauer foi engolido por uma maré holandesa. Como sobrevivente que era soube encontrar uma rama que o levou até à costa e no processo emergiu como um homem novo numa demarcação nova. Tinha nascido o líbero moderno.
Claro que Beckenbauer não inventou o líbero. Os duros stoppers italianos do Catenaccio há muito que praticavam a posição e jogadores da velha escola danubiana como o veterano Velibor Vasovic tinham-no adaptado aos novos tempos. Mas nenhum a interpretou de melhor forma do que ele. Sabedor que a passagem do tempo no seu corpo e a mudança estrutural do jogo o condenavam a uma posição cada vez mais redutora e limitada - como passaria com o seu grande rival nos campos de jogo alemães, Gunter Netzer - Franz decidiu seguir os ensinamentos de outro dos seus grandes mentores, Branko Zebec, e recuou no terreno de jogo para passar a liderar desde trás as cargas da equipa bávara. Mais tarde foi Udo Lattek, sempre o conservador, que o rodeou de um trio de defesas zonais que lhe davam a liberdade para mover-se sem se preocupar excessivamente com o espaço que deixava atrás. Beckenbauer passava a ser o inicio e o centro de tudo e só não precisava de ser a conclusão porque a sua metamorfose coincidiu com a explosão final de Gerd Muller como esse falso nove moderno tão esquecido. O libero Beckenbaueriano era um médio mais e um defesa com uma capacidade singular para lidar com a bola e os rivais e foi nessa encarnação da sua carreira que chegaram os troféus com a Alemanha em 1972 e 1974 e também as três vitórias consecutivas na Taça dos Campeões Europeus com o Bayern antes que em 1978 o New York Cosmos viesse bater à porta quando - ao contrário de Pelé - ainda estava na melhor das condições.
Muito mais importante que os títulos que conquistou, e foram muitos, Beckenbauer tornou-se fundamental pela forma como imprimiu um ADN ao seu clube e à sua seleção do qual se beneficiam ainda hoje. De tal forma foi assim que em 1984, quando a Alemanha Ocidental que tinha maravilhado o mundo com um futebol expressivo e atacante nos anos setenta deu lugar a uma série de máquinas em forma de atletas no inicio dos anos oitenta, foi a ele a quem encarregaram de emendar o erro. E tal como nos seus dias de jogador, também o Beckenbauer técnico voltou a demonstrar estar sempre um passo à frente, não só conduzindo a Alemanha a duas finais de Mundiais consecutivas - com um título incluído - mas a devolver parcialmente o espirito artistico à Mannschafft com a chegada de jogadores de classe mundial, um projecto que o seu fiel escudeiro Bertie Vogts continuou durante os anos noventa até que o modelo voltou a falir. Por essa altura Beckenbauer estava ocupado a ajudar a reconduzir de novo o seu próprio Bayern, ao lado do veterano de mil batalhas Uli Hoeness, que passara uma difícil etapa na viragem dos anos noventa a ponto de converter-se no chamado Hollywood FC para recuperar a sua posição hegemónica na Bundesliga.
Beckenbauer fez tudo isso e ainda foi um dos homens essenciais na história do marketing desportivo com a sua intima associação a Adi Dassler que levou a que, ainda hoje, um dos modelos de fato de treinos mais vendidos do mundo tenha o seu nome e o logotipo clássico da alemã Adidas. Foi também um cronista desportivo e um playboy inveterado, apesar da fama de conservador que pertencia realmente ao seu rival Netzer, e um apaixonado pelo jogo. Tão apaixonado que enquanto muitos dos seus rivais por uma posição na elite se entregavam ao hedonismo ou à militância, Beckenbauer sempre demonstrou ter um apetite voraz pela complexidade do jogo e da vida, nunca manifestando uma fidelidade absoluta a nada que não fosse ele próprio. Para uns podia ser um exagero natural de alguém que nunca escondeu olhar-se duas vezes no espelho antes de seguir em frente. Mas quando se é um dos maiores jogadores ofensivos e defensivos da história ao mesmo tempo - algo que nem os Cruyff, Maradona, Di Stefano, Pelé, Messi ou Ronaldo podem reclamar - é fácil deixar-se cair na tentação da adulação pessoal. Imaginem agora que são uma galáxia. Porque Franz Beckenbauer pode não ter tido o brilho singular de uma estrela tão potente como o sol, como alguns dos maiores, mas foi seguramente aquele que mais espaço e durante mais tempo abarcou num terreno de jogo como uma nebulosa sem fim. Provavelmente o futebol nunca mais verá alguém como ele. E se calhar isso também o deixaria feliz.
Para mi, uno de los GRANDES del Fútbol Mundial...un referente...